Às vezes, ser um dos últimos a falar de um grande tema tem suas vantagens. Ajuda a não repetir bobagens e exageros ditos por pressa ou excesso de emoção. Deste lugar, escrevo sobre o show de Caetano Veloso e Maria Bethânia que vi em Brasília, no último sábado (9).
O concerto dos filhos de Dona Canô foi o 11º de uma sequência de 16. Ou seja, já na última curva deste projeto, um dos mais bem planejados da história do showbiz brasileiro. Tiro o chapéu para quem teve a ideia e para quem está sabendo colocá-la no mundo.
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Um projeto que chega junto com uma clara troca de guarda na música brasileira. Milton “voz de Deus” já fez sua despedida. Gilberto Gil prepara uma última turnê. Aos poucos, a geração pós bossa nova, ou a geração dos festivais como queiram, vai saindo de cena com mais ou menos luz.
Para certo desespero de quem cresceu apoiado neles como os pilares inquebrantáveis do gosto e do pensamento urbano. Caetano e Bethânia, contudo, não estão se despedindo. Cada qual tem lenha para queimar. Mas se fosse a última dança dos irmãos de Santo Amaro, teríamos o adeus mais bonito.
Um show que une o compositor mais produtivo com a cantora mais poderosa e original desta geração. Por uma daquelas coisas da vida, ambos nasceram na mesma casa. E o repertório, inteligentemente, procura os pontos de contato entre as duas carreiras.
Frente Ampla da MPB
O resultado é uma espécie de “frente ampla” da música brasileira do século 20 até hoje.
Tem o samba do recôncavo tocado no prato que eles cresceram ouvindo. Tem a bossa nova que pirou a cabeça de ambos. Tem o samba carioca das escolas e o samba-canção aboleirado. E, claro, as muitas canções nascidas dos tambores e pontos das religiões afro-brasileiras.
A música política dos anos 1970 com seu gosto de Campari. O frenesi dos Festivais, do tropicalismo e da Jovem Guarda. A música brega das rádios AM. O pop adulto das FM dos anos 1980. O rock BR. Um rap da geração Z e até um louvor gospel da era do Spotify.
Muitos compositores e algumas das joias raras de Caetano entre as muitas centenas de canções que fez (veja o set list abaixo).
Elegantérrimo, num costume marrom cortado por ótimo alfaiate, Caetano se disse surpreso com a própria emoção e disse que teve certa dificuldade no começo do show. Não foi só ele. Talvez o borogodó do lugar – o estádio Mané Garrincha, com suas arquibancadas verticais e grandes pilotis – tenha a ver com isso. Alto-astral, altas transas e lindas canções.
Foi o cenário perfeito para quem viajou à cidade amada e ficou olhando o céu esperando uma tempestade que não veio. Quem não chorou na homenagem a Gal Costa não está vivo. No pequeno caco regional, cantaram um trecho da “Flor do Cerrado” que Caetano fez para amiga em quem “identificou o eco da bossa nova e o maior rockeira da MPB”. Bingo.
Bethânia e dois hinos
Bethânia não sabe brincar. Uma diva da ópera que canta partido-alto. É a bruxa e a rainha ao mesmo tempo. Uma entidade à quem, mesmo o mais materialista dos viventes, acaba reverente. Difícil de explicar. É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história.
Curioso perceber, em meio à multidão, como Cajuína, uma canção de adeus de Caetano ao amigo Torquato Neto, com letra complexa é um hino que todas as 40 mil pessoas sabiam cantar. O poeta piauiense, aliás, não tivesse morrido há muitos séculos, teria feito 80 anos justo naquele noite. Dois a menos que Caetano e dois a mais que Bethânia.
Mais improvável ainda é a força pop-religiosa de “Reconvexo”, a canção que Caetano fez para zoar com Paulo Francis. Devo confessar que levei Francis muito a sério no começo da adolescência até que o Brasil cantado por Bethânia e Caetano entrou pelos sete buracos da minha cabeça, se espalhando no campo e derrubando as cercas.
Quando Bethania canta “eu sou” todos que cantam junto acreditam também ser uma das forças da natureza descritas na letra de Caetano que consegue rimar a novena de Dona Canô com Andy Warhol. E fala do Olodum, de Joãozinho Trinta, da Mãe Aninha de Salvador do belle époque e do craque Bobô, ídolo do primeiro campeão brasileiro nordestino de futebol. Uma obra-prima.
Elegância absoluta
O número final é com a superbanda, espécie de E-Street Band brazuca, com músicos de várias origens sob a liderança do baixo de Jorge Helder, numa apoteose sem os donos da festa. Caê e Bethânia saem de fininho como tivessem ido dormir mais cedo sem querer constranger os convidados que ficam para tomar as garrafas que sobraram. Elegância absoluta.
Mesmo quem é ateu, viu milagres como eu vi no Mané Garrincha. Vimos Caetano e Bethânia cantarem a história – que ajudaram escrever – de um país que é macumbeiro e evangélico a um só tempo de um modo que nosso espirito ganha um brilho definido. Qualquer coisa que se sonhara.