Quando me perguntam sobre meus escritores brasileiros preferidos quase sempre preciso explicar quem foi Aldyr Garcia Schlee (1934-2018). O autor natural de Jaguarão, cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai, dedicou boa parte de sua carreira à escrita sobre as margens — geográficas e humanas. É mais conhecido por ter criado o desenho da camisa amarela da Seleção Brasileira, apesar de se declarar torcedor do Uruguai, o que resume bem o humor de seu espírito fronteiriço.
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Para mim, nenhum outro nacional escreveu tão bem sobre a dimensão cultural do futebol, sempre do ponto de vista dos personagens à margem da glória e da história oficial. Mas não foi só sobre o futebol da fronteira que Aldyr escreveu magistralmente.
Dono de pelo menos um romance grandioso, o épico Don Frutos, que narra os últimos meses de vida do caudilho uruguaio Don Fructuoso Rivera, o jaguarense era um contista puro sangue, especialista na estrutura das narrativas curtas. Na manhã em que chega a notícia da morte do Papa Francisco, o cardeal mais boleiro que já existiu, cumpre falar do pequeno clássico O dia em que o Papa foi a Melo, obra singular da carreira do escritor gaúcho.
Publicado no Brasil em 1999, o livro é composto por dez contos interligados que tem como pano de fundo um evento real: a visita do Papa João Paulo II à pequena cidade uruguaia de Melo, em 1988. No entanto, o interesse do autor não recai sobre a figura papal, mas sobre os moradores locais, seus preparativos, frustrações, memórias e esperanças.
Lançado originalmente em espanhol, em 1991, com o título El día en que el Papa fue a Melo, o livro só ganhou edição brasileira oito anos depois. Apesar do título, o Papa é quase uma ausência em boa parte dos contos. O que ocupa o centro do livro são as pessoas comuns: a negra Martiana, que vê na visita uma chance de milagre; o avô de 98 anos que se recusa a sair da cama; os vizinhos que preparam banquetes para fiéis que nunca chegam.
Este conto serviu de argumento para o filme O Banheiro do Papa, lançado em 2007, uma co-produção Brasil Uruguai dirigida por César Charlone e Enrique Fernández:
No conto “Melo era uma festa”, Schlee recorre ao ponto de vista de um jornalista para narrar o fracasso generalizado do evento. As autoridades esperavam ao menos 50 mil pessoas, vindas em caravanas do Brasil. No fim, pouco mais de 8 mil apareceram, boa parte delas da própria cidade. “Foi tudo tão rápido e inesperado como um milagre, mas um milagre às avessas”, escreve o autor, ironizando as expectativas frustradas dos moradores.
Em outro conto “Espelho partido”, um velho avô contempla por horas a rachadura de um espelho enquanto a cidade inteira gira em torno do ilustre visitante. A cena é um retrato sensível da introspecção, do cansaço de uma vida longa e da distância crítica de alguém que testemunhou as grandes reformas do Uruguai laico — e não se impressiona com o espetáculo religioso.
Ao dar voz aos esquecidos, Aldyr Schlee constrói um retrato da América Latina interiorana, longe dos centros de poder. Seu humor, sempre melancólico, humaniza o fracasso e transforma a expectativa frustrada em literatura das melhores. O milagre, se houve, está nas histórias que ficaram — e na forma como o autor as costura com afeto e ironia. Mais do que o registro de um acontecimento histórico, O dia em que o Papa foi a Melo é a crônica dos esquecidos nas pequenas cidades do fim do mundo.