Por Felipe ‘Magal’ Mongruel
Houve tempo em que se falava de amor no Brasil.
Era mais ou menos a mesma época em que os debates sobre as grandes “questões de fundo”, os temas que mexiam com a infraestrutura nacional, usavam como ringue a última página dos jornais.
Não raro, um assunto era proposto por algum prócer da nação e a coisa tomava ares de polêmica ao ser replicada em edição subsequente por alguém que dele discordava frontalmente e, muitas vezes, chegava um terceiro palpiteiro para meter a colher em tréplica que repelia a opinião dos dois primeiros contendores.
Pois é em homenagem ao debate e em respeito aos que, numa hora dessas, ainda ousam falar de amor que uso aqui o “editorial” do Fringe para apresentar a questão fundamental que dá o título a esta crônica.
Um dos mestres deste que é o mais brasileiro dos gêneros literários, o escritor Paulo Mendes Campos (1922-1991) nos ensinou que o amor não só acaba, mas ainda elencou uma série de momentos e circunstâncias onde e como isso poderia ocorrer.
“Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas.”
Por anos me assombrou a ideia de que como disse o velho PMC, que sabia das coisas, o amor poderia acabar “na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado…”
A força deste texto e a credibilidade do autor, um poeta que esteve no campo de batalha desta luta, deixaram a crônica “O Amor Acaba” como uma verdade literária nacional até que outro especialista nesta magia negra, o professor José Renato Gaziero Cella, que também é filósofo, matemático, advogado e dono de bar, desconfiou. E, como nos velhos tempos, replicou com muitas interrogações:
“O amor acaba? O cara disse. Numa esquina, num domingo, depois do teatro e do silêncio, na insônia, nas sorveterias, como se lhe faltasse energia.
Ele não volta? Não deixa rastro ou renasce?
Na esquina em que se beijaram uma vez, lá está, na sombra apagada pela luz, na poeira suspensa, na revolta da memória inconformada. Na solidão, lá vem ele, volta, com lamento, um quase desespero, e penso nos planos perdidos, que vida sem sentido…” escreveu o professor Cella.
Para ele, na insônia, o amor cai como uma tonelada de lápide: “E se eu tivesse feito diferente, e se eu tivesse sido paciente, e se eu tivesse insistido, suportado, indicado, transformado, reagido, escutado, abraçado?
Na sorveteria, ele volta, o amor, em lembranças. Porque aquele sabor era o preferido dela, aquela cobertura era a preferida dela, aquela sorveteria era a preferida dela, aquela esquina, aquele bairro, aquele clima, aquela lua, aquele mês, aquela temperatura, aquela raça de cachorro, aquele programa de fim de tarde e aquele horário sem planos…
No elevador, quantas saudades daqueles segundos em silêncio, presos na caixa blindada, vigiados por câmeras camufladas, loucos para se agarrarem, rirem, apertarem todos os botões, tirarem a roupa, escreverem na parede: “Eu te amo”.
Para Cella, “Saudades é amor”. E não se tem saudades do que não se amou. O amor não acaba, porque tenho saudades, ele filosofa. “Me lembro dela, me preocupo com ela, torço por ela, e se sonho com ela, meu dia está feito. O amor não pode acabar, porque sem ela ou sem a esperança de revê-la, até a chance de tê-la de volta, não vejo a paz”.
“Ela é uma trégua na minha guerra pessoal contra a minha paixão por ela. Amá-la me faz bem. Mesmo que ela não me ame, amo amá-la. Continuei amando desde o dia em que terminou. Passei meses amando como se não tivesse acabado. Ficaria anos amando mesmo se não tivesse voltado.
O amor não acaba, muda. O amor não será, é. O amor está. Foi”.
O amor, portanto, não pode acabar nas tantas músicas que ouvimos, trilhas das noites frias em que você sentava em mim nua, enquanto os meus braços imobilizavam os seus. Amor. O não-amor é o vazio. O anti-amor também é amor.
Eu te amava quando você respirava no meu ouvido. Lembra do meu dedo dentro de você? Amo-te, amo-te, amo-te. Instante secreto, sua boca incha, seus olhos apertam, suas unhas me arranham e você diz: Eu te amo!
Cella retoma o importante tema da saudade para concluir numa dialética negativa totalmente oposta a afirmação de PMC:
“O amor acabou quando você se foi?
Você sentiu saudades das minhas lambanças, das cores das minhas camisas, da umidade da minha boca, do cheirinho do meu travesseiro, da minha torrada com mel, do mamãozinho servido na boca, das noites pelados assistindo à tevê, dos vinhos entornados no lençol, do café da manhã com jornal, você sentiu falta de atravessar a avenida comigo de mãos dadas, de correr da chuva, de eu te indicar um livro, do cinema gelado torcendo para acabar logo e ficarmos a sós, você sentiu falta da minha risada, inconveniência, de eu ser seu amante, noivo, amigo e marido, dos meus olhos te espiando, dos meus dentes mordendo e mastigando, ficou tanto tempo longe e pensou em nós especialmente bêbada ou louca, queria me ligar, me escrever, meu cheiro aparecia de repente, meu vulto estava sempre ali, acaba? Diz que acaba.
Como acaba? Não acaba.
Diz, não acaba. Repete. Falei? Não acaba.
Pode virar amor não-correspondido. Pode ser amor com ódio, paixão com amor. Tem o amor e o nada. Ah, mais uma coisa. Antes que eu me esqueça.
O amor não acaba. Vira. Se acabar, não era amor.”
Nesta altura dos acontecimentos, cabe uma tréplica? Minha?
Pois se permitem, eu preciso falar do amor não vivido.
E o que dizer do amor sonhado, acordado mesmo, o desejado, o pensado, idealizado, o nunca cumprido. O que lateja, o que queria ser. Ou o que deveria ser. O que o distinguiria de amor completo para o não completo. O do momento eterno. O utópico. O inalcançável.
Existe? Existiu? Nunca existirá?
O amor buscado, perseguido, chorado e repetido nas mesmas cenas, dos mesmos atores, das mesmas falas, nas mesmas lágrimas escorridas, nos mesmos momentos, nos mesmos erros. Dos tantos erros. Quando só, o erro não vem, e o tempo passa rápido.
Quando junto, o erro é constante e o tempo é eterno, queria passar e não passa. O desamor é o sobrenatural, um fenômeno de magnitude. O amor é o simples, o curto e grosso. Quando vir, já foi. Contamina.
Doença, né? O tal “pathos”. Sem cura. Incurável. Sem vacina. Sem remédio, sem receita.
Ridiculamente simples. É sempre a mesma coisa. Ele não muda. Ela não muda. Nunca vai mudar.
São imperfeitos seres que perfeitamente se repetem em erros iguais. Não se aguentam. Em si. Se forjam, se abrem. Se matam. Pra recomeçar mais uma vez.
Doentemente de amor, por amor, por um amor não vivido, ou ainda não encontrado. Mas sempre sofrido. O amor não é tudo.
Sofrer por amor é tudo.
E mais um pouco.
Só você sabe.
Era isso.