Por Thiago Busse
Aconteceu tanta coisa em nossas vidas, e no mundo, desde aquele domingo de carnaval que me pego admirado quando me dou conta que só se passaram quatro meses do “dia em que o Brasil parou”.
Como sou do samba e do futebol, já tinha visto uma onda daquelas se formar. Uma comunhão ruidosa que vai crescendo no boca a boca, chamando as pessoas à rua. E o povo na rua muda a atmosfera da cidade que passa a tratar personagens distantes do nosso universo com intimidade apaixonada.
+ Leia Também + Paula Lima e Rita Lee: show une o melhor de dois mundos
Dessa vez, porém, não era futebol, nem Copa do Mundo, mas o cinema. Minha mais antiga e duradoura paixão. E quis o destino, e os caminhos das viralizações da internet, que a cena definitiva de uma inesquecível apoteose brasileira fosse captada na esquina da velha rua Riachuelo, no centro de Curitiba.
A voz de Penélope Cruz, em seu rosto projetado na parede do Cine Passeio, fez a multidão explodir. Essa imagem correu o mundo, e lembro que a primeira coisa que pensei é que nem todo mundo naquele carnaval devia saber que o embrião de tudo tinha saído da cabeça e do trabalho de dois talentosos curitibanos, Murilo Hauser e Heitor Lorega, roteiristas do filme Ainda Estou Aqui que ganhou o primeiro Oscar brasileiro.
No último sábado, dia 5 de julho, a dupla esteve pela primeira vez de volta ao Cine Passeio, este polo de resistência cultural brasileira (onde Ainda Estou Aqui ficou 21 semanas em cartaz sempre com sala cheia), para compartilhar generosamente suas experiências no processo de criação deste roteiro histórico.
Uma masterclass para uma sala abarrotada com plateia que ia de profissionais do setor a cinéfilos apaixonados – as inscrições esgotaram em minutos e houve longa fila de espera – todos ávidos por conhecer os bastidores e engrenagens da produção de um longa-metragem do mais alto calibre.
E saber como foi escrito um roteiro que tem como matéria-prima a memória de um passado sombrio de nossa história – mas, ao mesmo tempo, de uma belíssima história de resgate de uma heroína esquecida e de sua coragem e sua batalha para encontrar a verdade em meio à absurda e perversa máquina burocrática da ditadura.
Murilo e Heitor não deixaram ninguém na mão e explicaram como um filme passa do campo das ideias para o mundo real. É o roteiro a peça instrumental que consegue aglutinar uma equipe de centenas de pessoas em torno de um projeto. E isso demanda tempo e trabalho.
Murilo contou que tudo começou em 2019, quando Walter Salles, impactado com a leitura do livro Ainda Estou Aqui, de seu vizinho de infância Marcelo Rubens Paiva o procurou.
“Esse livro chegou pelo Walter, ele frequentou a casa, ele é muito próximo à família, e o Walter estava procurando um projeto pessoal desses há muito tempo, um projeto que ele tem proximidade e me propôs a adaptação”, disse.
Dali em diante, passaram-se sete anos de muitas pesquisas, numa imersão completa no universo do filme, na história e num convívio diário com a família Paiva.
O roteiro que ganhou o prêmio no Festival de Veneza passou por treze tratamentos até chegar à versão que vimos nas telas. Como bem disse Jorge Luís Borges, a “página de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada sem prejuízo, é a mais precária de todas.”
A conversa foi mediada pela competente roteirista, iretora e preparadora de elenco Nina Kopko que também esteve envolvida na produção de Ainda Estou Aqui. Nina conduziu a conversa com maestria, criando a jogada no meio-campo para deixar os dois protagonistas na cara do gol, para confortavelmente só empurrarem a pelota pra dentro.
E assim, eles falaram bastante: desde como achar o foco narrativo, o eixo, em todos os debates preliminares, até decidir que a linha deveria partir da figura de Eunice Paiva – esse o grande achado que revolucionou o projeto.
“Esse processo de adaptação é também um processo de descoberta. O livro, a gente costuma dizer, foi um convite do Marcelo para a gente entrar naquela casa e conhecer aquela família. E, a partir desse convite, a narrativa do filme foi indo para um outro lado. No livro, o narrador, o protagonista, é o Marcelo, e no filme é a Eunice”, disse Murilo.
Murilo e Heitor são uma dupla entrosada que se complementa em repertório e simpatia. Apresentaram documentos técnicos, trechos do roteiro original, cenas cortadas e muitas histórias de bastidores.
Contaram como foram as trocas de ideias com Walter Salles, mostraram uma espécie de esqueleto das cenas e das sequências, e como foi montada toda a estrutura do filme. E como, numa situação bastante rara num set de filmagem, as filmagens foram feitas em ordem cronológica.
“A possibilidade de estar junto na filmagem e de filmar em ordem cronológica realmente abre um leque muito lindo para a criação. Você vê o filme nascendo e ao mesmo tempo vai criando ele”, disse Murilo.
Em outra situação bastante incomum no cinema, os dois roteiristas contaram que participaram ativamente em todas as partes do processo, inclusive na hora das filmagens. Em geral, os roteiristas, assim que terminam e entregam o texto, se despedem do projeto.
Não foi o caso de Ainda Estou Aqui, e isso, acredito, fez a diferença, pois Murilo e Heitor participaram inclusive da famosa análise técnica – a leitura final do roteiro com toda a equipe do filme na pré-produção, antes do início da filmagem de fato.
Como já estavam mergulhados no projeto há anos, isso certamente ajudou na hora da tomada de decisões, tanto em questões práticas como no plano das ideias. E assim se fez um grande filme numa operação que ilustra perfeitamente os ensinamentos de Robert McKee, em um de seus grandes manuais de roteiro:
“Você pode achar que sabe, mas você não sabe o que sabe até conseguir escrever sobre isso. Pesquisar não é sonhar com o passado. Explore seu passado, reviva-o e depois passe para o papel. Em sua cabeça, é apenas memória, mas no papel vira material de trabalho. Agora, com a bile do medo em sua barriga, escreva uma cena honesta e única.”
Em Ainda Estou Aqui não há uma única cena fora de lugar no roteiro que já é paradigma brilhante de como transformar palavras e ideias em imagens e, por fim, num filme.
No final, os premiados arquitetos do Oscar brasileiro defenderam a necessidade de investir e apoiar a criação de laboratórios de roteiro como o Núcleo de Produção Audiovisual (NPA) de Curitiba tem feito. O NPA foi o anfitrião do encontro.
É preciso dar um jeito, meus amigos, para que todos saibam o valor desta parte, feita em prosa, da criação de uma obra de arte audiovisual – que é, ao mesmo tempo, a mais importante e a mais negligenciada de uma produção.
“Todo artista autêntico se encontra obcecado com os seus procedimentos técnicos. O fetichismo dos meios tem também o seu momento legítimo”, já ensinava Theodore Adorno.
Não é coincidência que, nos últimos anos, após surgirem novos projetos de desenvolvimento de roteiros pelo país, surgiram melhores, mais plurais e bem acabadas obras de cinema brasileiro. Simples assim.