Por Gabriel Costa, especial para o Fringe 

Em 1975, enquanto o governo militar se gabava do suposto “milagre econômico” e abria estradas no coração da floresta amazônica, como a BR-230, um filme ousado era lançado para expor feridas que o Brasil escondia: a destruição ambiental, a exploração humana e o fracasso social da Rodovia Transamazônica.

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Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, foi censurado logo após seu lançamento, acusado de ser “ofensivo à moral e aos bons costumes”. Mas, na prática, o que mais incomodava o regime era seu teor político explosivo.

O filme atacava frontalmente a ideia de progresso promovida pela Ditadura com obras como a Transamazônica. Ao mostrar o avanço desordenado sobre a floresta, a destruição ambiental, a prostituição infantil e o abandono de populações locais, a obra revelava o custo humano e ecológico da “integração nacional”.

Além disso, sua linguagem incomodava: um híbrido entre documentário e ficção, com entrevistas reais feitas com prostitutas, trabalhadores e moradores da Amazônia — pessoas que o Brasil oficial preferia esconder. Havia cenas de nudez, drogas e prostituição infantil, usadas não para chocar, mas para retratar uma realidade invisibilizada.

Como resultado, Iracema ficou mais de 20 anos proibido no Brasil, enquanto ganhava prêmios em festivais internacionais. Após a redemocratização, na década de 1990, o filme pôde enfim ser visto no país e passou a ser reconhecido como uma das obras mais corajosas do cinema brasileiro.

Na última quinta-feira, 24 de julho, Iracema – Uma Transa Amazônica voltou às salas de cinema, 50 anos após sua estreia, em cópia restaurada em 4K. O processo de restauração, realizado na Alemanha, contou com coordenação técnica de Alice de Andrade e apoio do CTAV, Mnemosine, IMS, PUC-Rio, Instituto Guimarães Rosa e da Cinemateca Brasileira.

Relação com o livro Iracema

Cena de Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

Ao ouvir o nome Iracema, muitos pensam na obra de José de Alencar. Nela, uma índia idealizada representa a pureza e a terra virgem brasileira. O romance narra seu encontro com o português Martim, resultando na miscigenação que, para o romantismo do século XIX, formaria o “povo brasileiro”.

O filme contesta essa visão. A Iracema de Bodanzky e Senna é mestiça, pobre, prostituída e marginalizada. Em vez de simbolizar a pureza da pátria, representa a violência histórica contra os povos indígenas. Sua relação com Tião, caminhoneiro branco, remete ao par do romance, mas é marcada por desigualdade, exploração e abandono.

O longa dialoga com Alencar para negá-lo. Retoma o nome, o imaginário e a estrutura simbólica da obra original, mas vira o espelho ao avesso, mostrando que o Brasil real — especialmente o da Amazônia dos anos 1970 — tem desigualdade, destruição e silenciamento.

Cinema Marginal

Elenco de Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

O Cinema Marginal surgiu no fim dos anos 1960 como forma radical de expressão política em meio à repressão. Feito à margem da indústria, rompeu com convenções narrativas e estéticas, adotando uma linguagem crua e provocadora.

Com baixo orçamento, personagens marginalizados e enredos caóticos, os filmes escancaravam a violência e a hipocrisia da sociedade. A Boca do Lixo, em São Paulo, virou polo da produção marginal.

Embora Iracema não se encaixe perfeitamente no gênero, é frequentemente associado a ele por sua força crítica. É uma arte feita para chocar.

Construção da Rodovia Transamazônica

Cena de Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna

Anunciada em 1970 como símbolo do progresso, a BR-230 foi uma das maiores obras do regime — e das mais polêmicas. A estrada pretendia ligar o Nordeste ao interior da Amazônia com o discurso de “integrar para não entregar”.

Na prática, ignorou estudos ambientais, desrespeitou populações tradicionais e deixou rastro de desmatamento e miséria. A maior parte da rodovia nunca foi pavimentada, e muitos colonos foram abandonados sem apoio do Estado.

A Transamazônica virou símbolo do fracasso da política de ocupação da Amazônia. No filme, ela aparece como trilha da devastação. Mesmo 50 anos depois, o longa continua atual ao retratar uma história pouco conhecida, após décadas de tentativa de apagamento — e 20 anos de banimento.

Diretores do filme

Diretor Jorge Bodanzky em ação em 1975.

Iracema tem direção compartilhada, algo pouco convencional. Jorge Bodanzky e Orlando Senna são nomes fundamentais do cinema político brasileiro.

Bodanzky, formado em fotografia e cinema na Alemanha, tornou-se referência por seu olhar crítico sobre os impactos do “desenvolvimento” no Brasil, com estética documental e engajada.

Orlando Senna, baiano com trajetória no jornalismo e na dramaturgia, articulou o cinema latino-americano como ferramenta de resistência. Sua obra funde ficção e realidade com forte viés social.

Juntos, romperam barreiras entre documentário e ficção para denunciar, com realismo e coragem, as feridas da ditadura e o avanço predatório sobre a floresta.

Restauração da obra

A restauração de Iracema – Uma Transa Amazônica, celebrando seus 50 anos, resgata uma das obras mais contundentes do cinema político nacional. Com direção artística de Bodanzky, o processo teve coordenação de Alice de Andrade e supervisão de Martin Köerber (Alemanha) e Débora Butruce (Brasil).

Feita a partir do negativo original da versão alemã e do magnético de som em 16 mm, preservados nos arquivos da emissora ZDF, a restauração em 4K foi realizada no laboratório Cinegrell, em Berlim, entre junho e julho de 2024.

As matrizes foram finalizadas e depositadas na Cinemateca Brasileira. Exibida inicialmente pelo Instituto Moreira Salles, a nova cópia reintroduz ao público um filme que segue atual em sua denúncia da violência social e ambiental na Amazônia.

Onde assistir

O filme está em cartaz nas seguintes cidades:
Belém (PA), Manaus (AM), Recife (PE), Salvador (BA), Maceió (AL), Aracaju (SE), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Poços de Caldas (MG), Porto Alegre (RS), Curitiba (PR) e Brasília (DF).

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