O músico e compositor Gerson Conrad não conseguiu mais dormir numa madrugada fria de São Paulo, em 1973, depois de ler o poema Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes. Um dos fundadores dos Secos & Molhados, grupo que em breve se tornaria um dos maiores fenômenos da música brasileira, ele tinha apenas 20 anos e ainda não sabia, mas estava prestes a escrever uma das canções mais importantes da história da MPB.
Canção que tinha começado a surgir naquela mesma tarde, quando João Ricardo, também integrante original do trio ao lado de Ney Matogrosso, entregou a ele o livro Antologia Poética de Vinicius de Moraes. “Quando recebi esse livro, a gente estava num trabalho de pesquisa, porque esse era o mote, o propósito do trabalho do Secos & Molhados. A gente queria musicar grandes nomes da literatura”, lembra Gerson. “Daí o João Ricardo falou: ‘Olha, eu não vou ter tempo de ler, lê você.’”
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Em casa, Gerson jogou o livro sobre a escrivaninha. O volume se abriu sozinho justamente na página com o poema Rosa de Hiroshima, escrito por Vinicius de Moraes em 1946, um ano após os bombardeios atômicos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
“Fui deitar com aquele poema forte gritando na minha cabeça, porque logo percebi que ele tinha tudo a ver com o nosso trabalho. O Secos & Molhados tinha uma veia politizada — não partidária, mas politizada em termos de comportamento, em termos daquilo que propúnhamos como trabalho. E o poema do Vinicius tinha um cunho totalmente politizado, internacional, que tratava da catástrofe atômica. Ou seja, vestia como uma luva. Era um pesadelo ainda vivo. Uma paranoia que ainda rondava o mundo.”
Caixinha de música
Gerson Conrad conta que, por volta das três da madrugada, ele despertou e pegou o violão que estava ao lado da cama. “Me perguntei: ‘Que partido será que 99% dos bons compositores adotariam diante de um poema que já é forte por si só? Que tipo de caminho musical?’ E aí veio a luz: em vez de criar uma música que brigasse com o poema, criei quase uma caixinha de música, que destacava o poema.”
A canção nasceria como uma espécie de moldura sonora contida, para que os versos de Vinicius ressoassem com mais força. O resultado: uma melodia suave, acompanhada apenas por violão e, no arranjo do disco, breves notas de flautas no início e no fim.
“O grande sucesso de Rosa de Hiroshima está nessa mescla: uma música totalmente delicada para um poema que é uma porrada para a humanidade — um alerta da catástrofe atômica. A música é contida para que o poema se expanda.”
Encontro com Vinícius
Menos de uma semana depois, Gerson teve a oportunidade de encontrar com o próprio Vinicius de Moraes e mostrar a composição: “Falei: ‘Vinicius, eu queria te mostrar uma coisa. Musiquei um poema seu.’ Aí ele falou: ‘Pega o violão e me mostra.’ Comecei a tocar, e os olhos dele se encheram de lágrimas. Antes de eu terminar a música, ele segurou no meu braço e falou: ‘Menino, tenha certeza de que a sua música vai eternizar o meu poema.’”
Na mesma conversa, Vinicius revelou que o poema era pouco conhecido: “Escrevi esse poema quando era diplomata, em 1946, e pouquíssimos intelectuais conhecem essa obra. Não me surpreende você, tão jovem, conhecer, mas sim ter feito uma belíssima composição.”
A profecia de Vinicius se cumpriria. Gravada por Ney Matogrosso no primeiro disco do Secos & Molhados, lançado ainda em 1973, Rosa de Hiroshima se tornaria o grande hino pacifista da música brasileira. A interpretação dramática e andrógina de Ney, aliada à força do poema e à suavidade da melodia de Gerson, criou um marco.
A música alcançou o 13º lugar entre as mais tocadas no Brasil em 1973, foi listada como a 69ª maior música brasileira pela Rolling Stone e está entre as 100 melhores composições do século.
“Talvez seja a música pacifista mais importante em língua portuguesa. Eu tenho essa impressão, sim”, disse Gerson Conrad, atualmente radicado em Curitiba e com um novo projeto musical prestes a estrear (leia mais acima). Me orgulho muito de ter sido um dos fundadores dos Secos e Molhados. e autor de uma das músicas mais importantes. Como brinco com a minha filha: consegui eternizar meu nome sem grande esforço.”