Quando soar o terceiro sinal do Teatro José Maria Santos, nesta quinta (25), às 20h, uma nova luz vai recair sobre a obra de um dos mais bem guardados segredos da literatura brasileira.
A peça No Céu da Boca é inspirada na obra de Jamil Snege (1945–2003), um autor tão original, influente e talentoso quanto paradoxalmente, e por muitos motivos, menos lido e reconhecido do que mereceria sua “literatura de invenção”.
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Com direção de Roddrigo Fornos, o espetáculo cumpre temporada bipartida que alcança os próximos dois meses desta primavera. Fica em cartaz até o próximo domingo (28) e retorna nos últimos dois dias de outubro, 30 e 31, e nos primeiros de novembro, 1º e 2.
Os ingressos estão à venda no Disk Ingressos.
A montagem da Na Carreira Produções Artísticas traz à cena quase o mesmo elenco que, sob a direção de Fornos, esteve na peça Cabaré Haikai, inspirada na obra de Paulo Leminski, sucesso de público e crítica na última edição do Festival de Curitiba.
No palco estarão Ane Adade, Michele Bittencourt, Renata Bruel e Kauê Persona o quarteto que brilhou em Cabaré Haikai e recebe como reforço o ator Marcelo Rodrigues. Aos cinco, se unem os músicos Gilson Fukushima e Rodrigo Henrique.
Sem repetir a fórmula bem-sucedida do espetáculo anterior, No Céu da Boca, caminha pelo mesmo sendero estético e usa a música como elemento cênico e narrativo.
A impressão, confirmada pelo diretor, é de que o repertório de uma companhia está tomando forma. (leia a entrevista completa abaixo).
Desta vez, porém, o texto é lido pelo olhar impiedoso sobre a condição humana de Snege, mantendo aposta no humor mais ferino como alternativa dramática de sobrevivência.
No último domingo (21), eu assisti ao ensaio aberto de No Céu da Boca e fiquei boquiaberto. Nunca tinha visto nenhuma adaptação da obra de Jamil Snege ao teatro (sei que houve).
Sempre li muitos de seus textos como argumentos à espera de roteiros de cinema e dramaturgias (quando me perguntam com quem a literatura do “turco” se parece sempre digo que é algo entre Raduan Nassar e Woody Allen).
Herdeiros de Jamil relançam romance clássico
Nesta quinta, antes da abertura da temporada e do lançamento da peça, os filhos do autor, o fotógrafo Daniel e o escritor Jean Snege, vão relançar quatro livros do “Turco”, com destaque para o romance Os verões da Grande Leitoa Branca (1990), que mescla memória, fantasia e realidade. A obra será reapresentada no mesmo dia da estreia da peça, em um projeto coordenado por seus filhos. Além deste, outros três títulos de Jamil Snege (“O Jardim, A tempestade”, “Senhor” e “Para uma sociologia das práticas simbólicas”) estarão à venda no teatro durante a temporada.
Se sua literatura não é tão incensada como a de seus contemporâneos, antecessores e sucessores – aqui vai meu palpite – é porque Snege levou às últimas consequências sua vocação de escritor.
Como Jamil se fez
Foi um autor independente no sentido real do termo. Por convicções artísticas e políticas, preferiu cuidar artesanalmente das edições dos próprios livros a entregá-las ao “mercado editorial”, a quem desprezava.
Publicitário de sucesso, tinha cuidado artesanal com as palavras e escreveu sua prosa em alta voltagem poética.
Foi provinciano vocacional e vanguardista ao mesmo tempo. Artesão de uma linguagem esquiva, avessa aos bons modos e costumes literários.
Colocava seus personagens, que às vezes eram seus amigos e desafetos, em situações insólitas expondo o ridículo das relações humanas, das famílias (felizes e as infelizes), das relações de trabalho e de toda a maldição do capitalismo.
Por essas e outras, é (para mim) nome de proa, ao lado de Valencio Xavier, de uma literatura invulgar feita em Curitiba na década de 1970, que é objeto de culto de uma geração como Joca Reiners Terron, Marcelino Freire, Marçal Aquino e Luiz Felipe Leprevost.
Boleros e camparis
O texto de “No Céu da Boca” faz um recorte, dentre os muitos possíveis, de um Snege que escreve, principalmente, sobre os desconfortos do amor romântico, em trechos extraídos dos livros de Como eu se fiz por si mesmo (1994) e Como tornar-se invisível em Curitiba e da novela Viver é Prejudicial à Saúde (1978),
Segundo Miguel Sanches Neto, em roteiro literário escrito sobre sua obra, Jamil Snege era um autor que preferia o “ritual da busca” à “ênfase no resultado”. Pois, o teatro também só é bem-feito quando usa esta matéria prima.
Em “No Céu da Boca”, a voz de Jamil no palco requer, por um lado, um grau de devoção à exigência estética de seu texto.
Por outro, entre boleros e canções imortais, com hálito de Campari e sob o alarido de boemias ancestrais, é um deleite contundente.
No Céu da Boca
Onde: Teatro José Maria Santos – Rua Treze de Maio, 655 – São Francisco, Curitiba
Setembro
25 e 26 (quinta e sexta-feira), às 20h
27 (sábado), às 17h e 20h
28 (domingo), às 11h
Outubro
30 e 31 (quinta e sexta-feira), às 20h
Novembro
1 (sábado), às 17h e 20h
2 (domingo) às 11h
Quanto: R$ 65,00 (inteira) e R$ 32,50 (meia-entrada), disponíveis no Disk Ingressos.
ENTREVISTA
O diretor Roddrigo Fornos conta como descobriu o amor na literatura de Jamil Snege
Que ventos levaram vocês a criar uma dramaturgia a partir da literatura de Jamil Snege?
A peça sobre a obra de Paulo Leminski surgiu pela comemoração aos seus 80 anos, para celebrar toda a potência artística dele como ensaísta, compositor, poeta, provocador, contista e publicitário. Leminski tinha urgência em estar à frente, com novas ideias e provocações. Foi uma experiência potente e frutífera trabalhar com o universo dele. Houve resposta de público e crítica a ponto de sermos chamados para o Festival de Curitiba, o maior da América Latina.
Isso nos colocou em outro patamar e nos desafiou: qual seria outro autor possível para nossa pesquisa? Numa conversa com o dramaturgo Felipe Hirsch, ele me disse para realmente ir para os gênios da literatura de Curitiba, além de Dalton e Leminski: Valencio Xavier, Jamil Snege e Wilson Bueno. Conversando com o escritor e tradutor Guilherme Gontijo, fomos atrás dos livros do Jamil, na Arte Letra, e compramos tudo que havia. Li e, na primeira página, já pensei: é ele.
Foi um sentimento pulsante e forte. Depois entramos em contato com Daniel Snege e pude falar para ele e para Jean sobre a importância do Jamil. Fizemos uma reunião com toda a equipe. Ficamos três horas conversando, com eles contando histórias do pai. Foi muito importante. Como dizia Beto Bruel: “o Jamil precisa passar o Atuba”. É por isso que vamos fazer. Já houve montagens anteriores com textos dele, mas nós vamos realizar uma peça inteira sobre a obra de Jamil Snege.
Há pontos de contato na linguagem com Cabaré Haikai e praticamente o mesmo elenco em No Céu da Boca. Há uma companhia se formando? O que muda de um trabalho para o outro?
Não há repetição no formato, mas sim a continuidade de uma estética que é característica da minha direção. Eu vivo com música. A música é a manifestação artística mais potente, porque imediatamente nos alcança. Ouço música o dia inteiro: acordo ouvindo, passo o dia ouvindo e vou dormir ouvindo. Já trabalhei como produtor ou diretor em mais de cinquenta shows de música, então não tinha como ser diferente na direção de uma peça.
Quando conversei com Guenia Lemos, nossa cenógrafa, sobre a peça do Jamil, sentimos a necessidade de trazer algo da linguagem que ela fez em Cabaré Haikai e foi muito elogiada, mas dentro do espírito do universo de Snege. Há mesas porque a peça se passa num bar, numa boate, num cabaré, ou onde o espectador queira criar o cenário. Há mesas, cadeiras, cadeiras sobrepostas e um bar. Essa estética cria uma ligação e a mesa e a cadeira acabaram se tornando uma referência.
O elenco é o mesmo, com o reforço de Marcelo Rodrigues, ator versátil, criativo e generoso, que contribui muito. São cinco atores e atrizes de dedicação integral. O que há de melhor em Curitiba. Junto com outras pessoas, claro, mas temos aqui artistas muito importantes. Acho que está se formando uma companhia. Ainda não tem nome, mas desenvolvemos uma estética original que nos deixa à vontade para viajar nos universos que escolhemos.
Quanto ao que muda de um trabalho para outro, neste eu tinha decidido que ninguém iria cantar. Mas haveria sempre música, trilha, estranhamento. Há sempre a intervenção de Rodrigo Henrique, nosso diretor musical, e de Gilson Fukushima, que faz a sonoplastia junto com Rodrigo. É uma dupla de excelência.
Outra mudança é a forma como contamos os textos de Jamil, que têm uma diferença em relação ao Leminski. Jamil fala de uma Curitiba com palavras bem escolhidas e frases muito bem escritas. Ele fala de si mesmo e fala dos outros. É genial o que ele faz.
Por fim, muda o fato de podermos ir para um lugar menos hermético. No trabalho sobre Leminski, criamos uma caixa branca fechada, como se fosse a cabeça do poeta. Aqui, não há nada. O teatro está todo aberto. A luz não é recortada, é etérea, aparece sem marcações. Não há corredores ou molduras. É uma luz etérea, porque é isso: um lugar que todos nós habitamos, de certa forma.
Como vocês escolheram os textos para o texto da peça?
Jamil tem humor ferino, autodepreciativo, uma visão existencialista na chave do pessimismo. Nós lemos tudo, passamos quase três semanas lendo diariamente todos os livros e materiais. Escolhemos o que nos agradava e o que poderia ser contado de forma a carregar nossa principal característica: falar de memórias.
Essa é uma marca do nosso grupo e não poderíamos deixar de falar delas.
Selecionamos textos que falam de amor, de desamor, de amor-próprio, de amor ao próximo. Os textos estão muito bem colocados. Começamos por gosto pessoal, mas caímos na questão do amor, porque há amor em tudo. Esse foi o processo.Pensamos onde a história poderia ser contada. Brinquei que não poderia ser no Passeio Público, por ser aberto. Nem na Rua XV. Mas poderia ser num bar, no Gato Preto, no Kapelle, nos cafés que eles frequentavam. E assim formatamos, mostrando que esse bar é um bar feliniano.
Essa ideia surgiu também nas escolhas musicais, junto com Rodrigo. O elenco sugeriu músicas bregas que estão na peça e são lindas: Hoje, de Taiguara, Sonhos, de Peninha, Gonzaguinha, entre outros. Nas minhas escolhas musicais, senti sonoridades de Ligeti, de Paulo Conti e também do compositor italiano Piero Piccioni, autor de Easy Lovers, que trouxe o clima romântico dos anos 1960. Depois veio a referência a Nino Rota e ao filme Amarcord, de Fellini. Percebi que a peça é feliniana, com a musicalidade de Nino Rota. O público entra ao som dessas músicas, todas tocadas ao vivo.