Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
Há mais ou menos 60 anos, em julho de 1965, o lendário cineasta Glauber Rocha lançava o manifesto Uma Estética da Fome, o mais importante da história do cinema brasileiro. O diretor apresentou o documento durante o congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial, na cidade de Gênova, na Itália.
Foi Glauber Rocha o grande responsável por popularizar o Cinema Novo, que, como o nome sugere, era uma nova maneira de ver e fazer filmes no país. Uma maneira, acima de tudo, brasileira, olhando para nossas mazelas, problemas e clássicos da literatura. Da escolha de enquadramento à escolha das histórias contadas, tudo “à brasileira”.
Dessa forma, Uma Estética da Fome é um manifesto para o Cinema Novo, que, em 1965, vivia sua segunda fase. Glauber, além de cineasta, era um intelectual que via no fazer cinematográfico a melhor forma de se expressar artisticamente sobre o mundo.
Primeira fase do Cinema Novo
Os filmes da primeira fase do Cinema Novo expressam a motivação original do movimento: denunciar as injustiças sociais do Brasil e dar voz à classe trabalhadora. Com foco em temas como fome, violência, alienação religiosa e exploração econômica, retratavam o fatalismo e o estoicismo populares, mas com um otimismo político, acreditando que expor esses problemas seria o primeiro passo para superá-los.

Diferente do cinema tradicional, que mostrava o Brasil idealizado, o Cinema Novo buscou os “cantos sombrios” do país — favelas e sertão — com uma estética documental, filmagens em preto e branco e uso de câmeras de mão para capturar a realidade do povo.
Logo na primeira fase, Glauber Rocha, com sua “estética da fome”, propôs um cinema crítico à desigualdade e à opressão. Seu filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) simboliza essa ideia ao sugerir que a violência seria a única saída para os oprimidos. Sob sua liderança, o Cinema Novo ganhou reconhecimento internacional e tornou-se símbolo de engajamento político e renovação estética no cinema brasileiro.
Segunda fase
Com o golpe militar de 1964 e a deposição de João Goulart, o Brasil entrou em uma ditadura sob o governo de Castelo Branco, e a população perdeu a fé nos ideais do Cinema Novo, que prometera defender os direitos civis, mas não conseguiu evitar a queda da democracia.

A segunda fase do Cinema Novo buscou lidar com a desilusão e a perplexidade geradas pelo golpe, analisando o fracasso do populismo, do desenvolvimentismo e da esquerda intelectual em proteger a democracia.
Nesse período, os diretores também tentaram tornar o movimento mais acessível e lucrativo, transicionando da “estética da fome” para uma linguagem voltada ao grande público. Foi então que surgiram os primeiros filmes com protagonistas de classe média, como Garota de Ipanema (1968), de Leon Hirszman, marcando uma mudança de foco no Cinema Novo.
Terceira fase
A terceira fase do Cinema Novo, conhecida como fase tropicalista ou “canibal-tropicalista”, combinou temas sociais e políticos com uma estética mais viva e exuberante, inspirada na riqueza visual da cultura brasileira.

Influenciado pelo movimento tropicalista, esse período incorporou elementos de kitsch, ironia e cores intensas, explorando o canibalismo tanto literal quanto simbólico — como em Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), de Nelson Pereira dos Santos, onde o ato de devorar o inimigo representa a ideia de o Brasil “canibalizar” influências estrangeiras para transformá-las em força própria. Para Glauber Rocha, essa “estética da violência” simbolizava o despertar do colonizado e o poder revolucionário da cultura oprimida.
Com a modernização econômica do país, os filmes tornaram-se mais polidos e profissionais, priorizando a estética em detrimento da crítica social, o que levou parte do público e dos cineastas a considerar que o movimento havia se afastado de suas origens populares. Essa reação deu origem ao Novo Cinema Novo (ou cinema Udigrudi), que retomou a linguagem crua e marginal das primeiras fases.
Estética da fome
Estética da fome
Após o fim do Cinema Novo, o Brasil sofreu até achar novamente uma identidade cinematográfica. Foi apenas na retomada, no fim dos anos 90, que a sétima arte conseguiu respirar no país — e, mesmo assim, sem a mesma criatividade dos tempos de Glauber.
Foi justamente a estética da fome que deu ao Brasil seu cinema mais político, original e reconhecido internacionalmente. Por isso, entendê-la é entender o que há de mais profundo nas raízes tupiniquins.
“A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.”
O Cinema Novo surge justamente como uma maneira de tentar transmitir nossas raízes. Com sua filmografia, Glauber e outros diretores da época se colocam ao lado de grandes intelectuais e sociólogos que dedicaram suas vidas ao Brasil — fato que ele descreveu em seu manifesto.
O Cinema Novo também é Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, Graciliano Ramos e Jorge Amado.
Tudo “À brasileira”.
“De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo, hoje tão condenado pelo Governo do Estado da Guanabara, pela Comissão de Seleção para Festivais do Itamarati, pela crítica a serviço dos interesses oficiais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil, ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de ’30, foi agora fotografado pelo cinema de ’60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no golpe de abril. E foi a partir de abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.”
O Cinema Novo é a arte dos invisíveis, da vida que muitos se recusam a enxergar. Como escreveu Saramago em Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Glauber presenteou o povo brasileiro com um cinema que não se opõe à realidade cotidiana, mas a revela — uma arte que repara, no sentido mais profundo do verbo: ver com atenção, com empatia, com consciência.
“Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto: e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem, mais agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.”
No jeito mais Carlos Marighella de ser, o Cinema Novo foi e continua sendo revolucionário. A violência pode ser uma forma de revolução, ainda mais em um país que manifesta a cultura da fome nos mais diferentes eixos — e hoje, 60 anos depois, pouco mudou. Continuamos sendo o mesmo Brasil, mesmo que com lentes diferentes.
Mas assistir esses filmes hoje em dia, é uma lembrança de que — parafraseando Marighella — “a única luta que se perde é a que se abandona.”
“Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.”

Na época da Ditadura, Glauber se estabeleceu como um dos líderes da esquerda brasileira, ao lado de políticos e outros artistas. Tal coragem obrigou o cineasta a se exilar em Portugal, em 1971. No mesmo ano que escreveu o manifesto, em 1965, ficou 18 dias preso após vaiar o ditador Castello Branco. Ainda foi revelado, através da Comissão da Verdade, que o regime tinha planos para matar o diretor, assim como fez com tantos outros que ousaram ser revolucionários.
“Explicação: Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique, à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano: além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos novos e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade, e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura intelectual, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na moral que pregar: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a consciência de sua própria miséria.”
No Cinema Novo, a câmera simbolizava liberdade e revolução — um instrumento para imaginar um Brasil mais justo, que não desviasse o olhar de sua própria realidade.
Que o cinema brasileiro atual se deixe contagiar pelo germe inquieto de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade.
E que esse mesmo germe transformador viva em mim — e em você que lê estas palavras.
