No léxico do maestro Isaac Karabtchevsky, tempo não é calendário. São compassos e respirações. Aos 91 anos, o decano da música de concerto brasileira olha para o passado e para o futuro em entrevista exclusiva ao Fringe. “No pódio, não dá para ser morno. A partitura pede corpo inteiro. Pede entrega”, disse.

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Desde 2004, Isaac Karabtchevsky dirige a Orquestra Petrobras Sinfônica. Ali, consolidou uma assinatura artística que mistura rigor e uma mão estendida à inovação. Em 2024, conduziu a primeira turnê internacional do grupo por Uruguai e Argentina.

Aos 91 anos, maestro é um “tradutor” da música. Foto: Tomaz Silva

O arco dessa trajetória começa há sete décadas. Por 26 anos, ele esteve à frente da Orquestra Sinfônica Brasileira e deu ao país o Projeto Aquarius — uma das iniciativas mais marcantes de popularização da música de concerto na América Latina. Milhares de pessoas reunidas ao ar livre descobriram, sob sua regência, que a música erudita podia ser festa e comunhão.

No palco lírico, assinou montagens decisivas. Em Washington, seu Boris Godunov, de Mussorgsky, foi aclamado pelo The Washington Post como a melhor produção da temporada 1999–2000. Com a Osesp, encarou um desafio monumental: gravar a integral das sinfonias de Villa-Lobos, resgatando partituras e reconstruindo um repertório essencial da música brasileira.

Desde 2011, Isaac Karabtchevsky dirige também a Orquestra Sinfônica de Heliópolis e o Instituto Baccarelli, onde transforma prestígio em instrumento social. Ali, música é formação e futuro. Uma orquestra nascida da periferia, que reflete e devolve à cidade o som de sua própria esperança.

Uma das apresentações do projeto Aquarius. Foto: O Globo

Leia a  entrevista com o maestro Isaac Karabtchevsky

Fringe:  Maestro, o senhor costuma se definir como “um vulcão em erupção”. Como essa metáfora traduz sua maneira de reger e de viver a música?

Olha, quando eu digo que sou um vulcão em erupção, não estou falando de fazer barulho por fazer. É que a música exige de você uma entrega total, uma paixão que vem de dentro e explode para fora. No pódio, você não pode ser morno, não pode ser político. A música é fogo, é vida pulsante. Quando eu rejo, não estou apenas marcando compassos – estou vivendo cada nota, cada frase, cada respiração da orquestra. O vulcão não pede licença para entrar em erupção, e a música verdadeira também não. Ela te toma, te consome e depois se espalha por toda a sala, incendiando os corações.

A expressão “a regência para além do gesto” é recorrente entre os estudiosos. O que significa, para o senhor, reger além do gesto?

Qualquer um pode aprender os gestos básicos da regência em seis meses. Mas reger de verdade… isso é outra história. Reger além do gesto significa que você está se comunicando com a alma dos músicos, não apenas com seus olhos. É ter uma visão tão clara da música que ela se transmite através do seu ser inteiro – pelo olhar, pela respiração, pela sua própria vibração. Quando você rege além do gesto, os músicos não estão seguindo sua batuta, estão seguindo sua música interior. É como ser um tradutor simultâneo entre o compositor e os músicos vivos.

O senhor poderia comentar a importância do equilíbrio entre técnica e emoção, usando a metáfora do “filé de peixe” que costuma citar em suas aulas?

Ah, o filé de peixe. Imagine que você vai preparar um filé perfeito. Se você não souber a técnica – a temperatura certa, o tempo de cozimento, os temperos – vai queimar ou vai ficar cru. Mas se você tiver só a técnica, sem amor, sem paixão pelo que está fazendo, vai sair um peixe sem alma, sem sabor. A música é igual. A técnica é sua base, sua segurança – você precisa conhecer a partitura de cor, saber cada entrada, cada dinâmica. Mas se parar aí, vai ser um robô. A emoção é o que dá vida à técnica, é o que transforma notas em música. O segredo é ter tanto domínio técnico que ele vire automático, liberando você para voar na emoção.

O que diferencia um regente apenas técnico de um verdadeiro intérprete capaz de emocionar plateias?

A diferença é simples: o regente técnico toca as notas, o intérprete toca as pessoas. O técnico está preocupado em não errar, em manter tudo certinho, bonitinho. Já o verdadeiro intérprete tem coragem de arriscar, de mostrar sua alma, de emocionar. Ele entende que a música é uma linguagem viva. Quando você vê um regente que consegue fazer 80 músicos respirarem como um só, que consegue criar silêncios que falam mais alto que os fortes, aí você está diante de um intérprete verdadeiro.

Que conselho o maestro de hoje daria ao jovem Isaac Karabtchevsky, que começava a reger um coro em Belo Horizonte?

Eu diria: ‘Isaac, pare de ter medo de errar. Primeiro, preste atenção nos gestos. É o que vem primeiro. Conheça a partitura como a ti mesmo. Mantenha a calma, sempre. E ouça. Um maestro que não escuta bem, não tem o respeito dos músicos. E nunca, nunca deixe de estudar. A partitura sempre tem segredos novos mesmo se executada 50 vezes.’

Falando do concurso que leva seu nome: quais são os elementos cruciais que devem estar presentes na formação de um jovem regente?

Primeiro: conhecimento musical profundo. Não adianta ter carisma se você não sabe o que está fazendo. Segundo: humildade para aprender sempre. Terceiro: coragem para ter sua própria voz artística. Não quero ver clones de outros maestros, quero ver personalidades únicas. Quarto: capacidade de liderança – você precisa inspirar 80, 100 pessoas a darem o melhor de si. E por último, mas não menos importante: amor genuíno pela música. Se você não ama de verdade, vá fazer outra coisa, porque a música precisa de gente apaixonada, não de gente que quer apenas uma profissão.

Na sua opinião, quais são as qualidades indispensáveis de um maestro?

Primeiro: ouvido. Se você não escuta, não pode ser maestro. Segundo: memória musical excepcional. Terceiro: capacidade de comunicação – você precisa falar a linguagem de cada músico. Quarto: resistência física e emocional, porque reger é desgastante. Quinto: carisma natural – não o carisma de showman, mas aquele que faz as pessoas confiarem em você. E sexto: estude eternamente – o dia que você parar de aprender, vai começar a morrer artisticamente. Ah, e uma qualidade que poucos falam: paciência. Paciência para construir uma orquestra, paciência para ensinar, paciência para amadurecer uma interpretação.

O senhor costuma dizer que “cada minuto sem saber o que fazer são 100 dólares perdidos”. O que essa frase revela sobre a relação entre eficiência e criação no ensaio?

Essa frase é sobre respeito – respeito pelo tempo dos músicos, pelo dinheiro da instituição, pela música que estamos servindo. Quando você entra no ensaio sem estar preparado, sem saber exatamente o que quer trabalhar, você está desperdiçando um tempo precioso que poderia estar criando música. Mas atenção: eficiência não significa pressa! Significa ter objetivos claros. Posso passar 20 minutos trabalhando duas medidas se sei que isso vai elevar o nível da interpretação. O que não posso é ficar perdido, sem rumo. O ensaio tem que ter a intensidade de uma cirurgia: cada movimento deve ser preciso e necessário.

Como tem sido liderar a Orquestra Petrobras Sinfônica ao longo de tantos anos? Quais foram os maiores desafios e conquistas desse período?

A Petrobras Sinfônica foi um sonho que se tornou realidade, mas também uma responsabilidade enorme. O maior desafio sempre foi manter o nível artístico alto em meio às turbulências políticas e econômicas do país. Construir uma orquestra não é como montar um carro – você está lidando com seres humanos, com egos, com sonhos, com medos. A maior conquista foi conseguirmos elevar a qualidade da orquestra para um nível internacional. Isso me enche de orgulho! Conseguimos gravar CDs importantes, fizemos turnês internacionais, revelamos solistas brasileiros. Mas o que mais me orgulha é ter contribuído para elevar o padrão da música clássica no Brasil.

O Projeto Aquarius foi um marco de democratização da música clássica. É possível imaginar algo semelhante nos dias de hoje?

Claro que é possível! O Aquarius provou que o povo brasileiro gosta de música, só precisa de oportunidade. Hoje, com a internet, com as redes sociais, as possibilidades são ainda maiores. Mas precisa ter coragem política e visão cultural. O problema é que muitos gestores ainda veem a música clássica como coisa de elite, quando na verdade ela é patrimônio da humanidade. Se conseguirmos levar orquestras para as periferias, para as escolas públicas, para os lugares onde a música pode mudar vidas, estaremos plantando sementes de transformação social. A música clássica tem esse poder. Só precisa ir aonde o povo está.

De que forma as orquestras podem dialogar com a comunidade e se tornar parte integrante da vida cultural das cidades?

As orquestras precisam derrubar os muros! Tem que ir às escolas, aos hospitais, às praças, aos bairros populares. Tem que fazer concertos didáticos, oficinas, projetos sociais. A orquestra deve ser vista como um bem público. Em muitas cidades europeias, a orquestra local é motivo de orgulho. Aqui no Brasil ainda estamos aprendendo isso. A orquestra precisa ser curiosa sobre sua cidade, sobre sua gente, sobre suas tradições. Pode tocar música brasileira, pode colaborar com artistas locais, pode contar a história da cidade através da música. Quando isso acontece, a comunidade adota a orquestra como sua, e aí a mágica acontece. Agora mesmo, será inaugurada a primeira sala de concertos do mundo numa favela, em Heliópolis, São Paulo. A sala ficará dentro de um complexo cultural e terá o mesmo padrão da Sala São Paulo. Isso é maravilhoso porque demonstra o projeto do Baccarelli de fundar uma orquestra jovem numa favela deu tantos frutos que teremos hoje um teatro para abrigar essa orquestra.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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