Aos nove anos meu pai se rebelou pela primeira vez.

Ainda morando em Paranaguá cansou-se dos cortes de cabelo horríveis e avisou seus pais que ou vinha para Curitiba cortar ou deixava tudo crescer. 

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Aqui na capital, seu avô o levou em um salão onde trabalhava o jovem barbeiro Zé que de primeira acertou seu corte. A partir daí começaram visitas periódicas, sempre com o mesmo profissional. Entrava ano saía ano, mudava o local e o penteado, mas o cabeleireiro era sempre o mesmo. 

Meu pai e Zé construíram uma relação de fidelidade de 50 anos que atravessou diferentes fases da vida e cortes de cabelo. Zé era o responsável pelo cabelo do meu pai quando ele o deixou crescer e foi confundido com um terrorista no aeroporto da Argentina nos anos 80. Foi também o responsável por raspá-lo após acontecer o tão desejado vestibular de medicina. 

Muitos figurões eram clientes da barbearia, incluindo dois ex-governadores. Um deles, antes de morrer, deve ter ultrapassado o tempo de casa de meu pai, o outro deixou de ser cliente quando quis que o Zé passasse a atender no Palácio das Araucárias. Aliás, o Zé só passou a atender em casa quando o prédio em que ficava sua barbearia, na Praça Osório, foi demolido.

Como um bom barbeiro, Zé sempre tinha uma boa história para contar. Seus causos podiam ser sobre qualquer coisa e entretinham até os mais sérios dos clientes. Ele sabia conversar sobre todos os assuntos, futebol, política, amenidades, o que o cliente puxava ele emendava. Uma de minhas histórias favoritas é sobre sua sogra que passou a morar com ele e sua esposa e quando a mulher foi embora subitamente passou a ser cuidada por ele. 

Zé era boêmio e prosador. Gostava de conversar e se o cliente fosse tímido, não tinha problema, ele se encarregava da parte de falar. Se ainda estivesse vivo estaria triste pois seu point de todo dia fechou. O Stuart, seu bar do coração, que ficava a apenas alguns metros de sua barbearia, talvez, simbolicamente, não tenha aguentado a partida de um dos símbolos da velha boêmia. 

Em seus últimos anos de vida, Zé já não era ágil como antes, mas ainda era carismático como sempre. Tremia um pouco, a vista já não era tão boa, mas meu pai ainda era seu cliente fiel. Ele ia em nosso apartamento cortar seu cabelo de maneira improvisada no banheiro, até que não conseguiu mais ir.

Hoje em dia meu pai é fiel a outro barbeiro, Sérgio, mas o dono da barbearia, por coincidência do destino se chama, também, Zé.

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