No começo da década de 1990, o cinema brasileiro respirava por aparelhos. A extinção da Embrafilme e demais políticas públicas para o setor fizeram a produção regredir à era pré-industrial. Toda a cadeia produtiva do cinema foi arrastada para o mesmo buraco.

A onda atingiu os festivais de cinema. Em 1992, antes de sua vigésima edição, o Festival de Cinema de Gramado estava à beira da extinção. Para sobreviver, o evento se abriu para uma programação internacional de produções ibero-americanas.

Foto: reprodução

A fórmula deu fôlego ao evento, ainda que o nível dos filmes das primeiras edições não seja, digamos, memorável. Dois anos depois, porém, o festival chamou o cineasta italiano Michelangelo Antonioni para participar da festa e teve a chance de dar cinco Kikitos a um filme que marcou a história do cinema latino-americano e da luta política por diversidade no mundo inteiro.

“Morango e Chocolate” não está disponível em nenhum streaming. É possível, porém, assisti-lo, legendado em português no YouTube:

O cubano Morango e Chocolate foi o melhor filme para os três júris – oficial, público e crítica. A dupla de protagonistas Jorge Perrugoría e Vladimir Cruz dividiu o prêmio de melhor ator, e Mirtha Ibarra ganhou como atriz coadjuvante. A “película”  arrasa-festival já havia ganhado o Festival de Havana em 1993 e o Prêmio Especial do Júri em Berlim.

O filme mais popular da cinematografia cubana é uma adaptação de um conto do escritor Senel Paz. O livro que o contém – e que leva o nome de seu texto mais notório – foi traduzido para o português em 2012 por Eric Nepomuceno, pela Geração Editorial.

Capa do livro lançado no Brasil em 2012. Foto: Reprodução

A trama do conto – e do filme – fala da amizade improvável entre dois homens na Cuba dos anos 1980. David (Cruz), um estudante tão cheio de dor de corno pela perda da namorada quanto de fervor revolucionário ao regime castrista, conhece o artista Diego (Perrugoría), homossexual e, na medida do possível, um militante contra a homofobia.

Desde os anos 1960, o homossexualismo foi alvo não só de rejeição social em Cuba, mas também havia a política não positivada dos “parâmetros” que limitavam o emprego na educação e na cultura de pessoas com sexualidades não heteronormativas.

Muitas dessas pessoas tidas como de caráter desviante e antirrevolucionário, como homossexuais ou religiosos, chegaram a ser enviados às Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAP), campos de trabalho agrícola nos primeiros anos do regime.

Na cabeça do confuso David, surge um dilema: o dever “patriótico” da denúncia ou a aceitação da amizade e, nesse conflito, as duas partes vão mudando suas percepções políticas e pessoais.

Vista aérea da sorveteria Copelia e sua arquitetura peculiar, em Havana. Foto: Reprodução

Boa parte da ação se passa na sorveteria Copelia, um dos estabelecimentos icônicos do regime castrista, com sua arquitetura modernista, que, após o sucesso do filme, virou um ponto turístico internacional.

A obra de Paz mostra a realidade em Cuba com limpidez, senso crítico, sem maniqueísmo e com os olhos dos próprios cubanos. É uma realidade dura, com grandes dificuldades enfrentadas pelos cubanos naquele momento extremo da Guerra Fria.

A direção do lendário Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e de Juan Carlos Tabío (1943-2021) conseguiu manter esta dimensão intacta em um dos mais bem-sucedidos casamentos entre cinema e literatura.

Aliás, é preciso abrir um parêntese sobre Alea. Um dos grandes diretores cubanos, Titón, como era conhecido, dirigiu longas históricos como Memórias do Subdesenvolvimento, mas ficou doente e precisou ser internado durante a produção. Tabío, seu assistente, ajudou-o a terminar o filme com muito custo.

O “Titon” exercendo seu ofício no set de filmagem nos anos 1960. Foto: Reprodução

“Essa história de amizade entre esses dois grandes artistas e de amor pelo cinema também teve muito peso dentro do filme”, disse Perrugoría em Havana, em 2023, numa sessão especial pelos 30 anos do filme.

No mesmo evento, Cruz lembrou que o filme fez com que as pessoas não se identificassem apenas com os reprimidos, mas também com os opressores. “Tivemos experiências de pessoas que saíam do cinema e diziam: ‘eu agi assim, fui intolerante, reprimi homossexuais'”, disse o ator.

Reunião do elenco de “Morango e Chocolate” em Havana em 2023. Foto: Divulgação

O sucesso internacional do filme foi abraçado pela comunidade LGBTQIA+ no mundo todo. E foi fundamental na autocrítica feita, anos depois, pelo próprio Partido Comunista Cubano e vocalizada pelo comandante Fidel quanto à intolerância da revolução às relações homoafetivas.

Em Cuba, um lento processo político de inclusão e diversidade culminou, em 2022, com a aprovação, em referendo, do Código da Família, que além de permitir o casamento e a adoção por pessoas do mesmo gênero, reconheceu outros direitos civis.

Ativistas cubanos comemoram a aprovação do casamento gay em 2022. Foto: Reprodução

Morango e Chocolate foi a centelha de muitas mudanças nesse campo, inclusive no Brasil, após aquele Festival de Gramado em 1994. O próprio Festival de Gramado passou a respirar ares melhores e naquele mesmo anos a onda da “retomada” do cinema nacional já estava se erguendo no mar.

Alea morreu dois anos depois, no auge da popularidade internacional, logo após lançar Guantanamera, uma nova parceria com Tabío. O primeiro filme da dupla, contudo, segue bastante atual.

Tanto por apontar as contradições dos regimes políticos quanto por provocar a necessária autocrítica que todos, mesmo os que se dizem progressistas, precisam fazer para romper as estruturas sociais que produzem a homofobia.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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