Em uma fala do roteiro de Hilton Lacerda que deu origem ao filme Tatuagem e, depois, ao espetáculo homônimo que a Cia da Revista apresentou em Curitiba, um dos personagens, o poeta-filósofo-cineasta, diz: “O importante não é o que as pessoas vão ver, mas o que elas deixarão de ver”.
Ainda que pareça uma passagem acidental, pode ser janela para o diálogo com o espetáculo do grupo paulistano apresentado no festival.
Senão, vejamos. Pelo que se pode deduzir, a ação se passa no final dos anos de 1970, quando era preparada a abertura política depois de quase duas décadas de regime civil-militar no Brasil. A fase mais barra pesada da ditadura havia passado, mas a cultura política permanecia – como permanece, residualmente, até hoje. Inspirada na história do grupo pernambucano Vivencial, a peça mostra uma trupe de teatro de Recife-Olinda, na labuta diária para sustentar seu enclave libertário – o café-show Chão de estrelas, lugar de reunião, criação e trabalho de artistas, intelectuais e gente do povo que se opunha de um modo próprio aos militares.
A fala do professor-cineasta – um idealista entusiasmado e ao mesmo tempo uma espécie de corifeu com bola de cristal, a consciência onipresente do espetáculo – anuncia então que uma parte importante da trama será afirmada, paradoxalmente, pela quase ocultação. Sim, a peça entrega de imediato que estamos sob o regime autoritário e seus mecanismos de violentação. O que veremos é um retrato imaginado das relações de poder, de mando e submissão naquele momento. Mas desde logo é possível perceber que na história contada o mais grave da violência não está no primeiro plano da narrativa. Daí a consideração do poeta: tão importante quanto o que você vai ver é o que você não verá, mas está lá.
De fato, o enfrentamento entre liberdade e interdição é feito à margem de qualquer preocupação didática ou discurso político direto. O mais delicado do texto de Hilton Lacerda está em representar o dissenso social na chave das relações íntimas.  É assim, por exemplo, que o quartel militar – símbolo da força, da ordem, da disciplina –, quando aparece, é quase sempre para criar um contraponto imediato ao cabaré, sem que entre no debate da repressão, por exemplo. É esta a cifra da ação que seguirá propositalmente ocultada na peça. É um procedimento engenhoso que permite entre outras coisas que o contraste entre autodeterminação e censura seja representado fundamentalmente através dos encontros entre amigos, familiares e ficantes em suas encruzilhadas existenciais. Ou seja, a partir das relações afetivas, em uma épica íntima na qual o confronto político maior deve ser lido no campo das particularidades.
Os eixos que articulam os dois mundos – o quartel e a boate – são Clécio e Fininha, ladeados por outras tantas personagens e histórias que compõem a um só tempo o retrato de uma comunidade fora da ordem e o próprio regime de mando e submissão movido pela violência moral.
Clécio é a liderança. É quem organiza a criação naquele paraíso da arte ferina e do protesto feito com bundas de fora, canções mal criadas, paus, e cus carnavalizados, cantados e dançados em números político-pornográficos nos quais o sarcasmo orienta as falas e o cabaré oferece a forma do espetáculo. Clécio é pai e vive o dilema de educar o filho em bases libertárias ou reagir ao pedido de intervenção feito pela ex-mulher.
O soldado Fininha é a mudança vital. Descobre no “Moulin Rouge do subúrbio” o lugar que sempre esteve nele. Junto a Clécio vive o tesão e os caminhos prazerosos do desejo com coragem revolucionária. Na perspectiva do difícil horizonte brasileiro indicado pelo filósofo, talvez ele seja a testemunha e o sujeito mais tomado pelo entusiasmo da vida como coisa mudável. É um camarada que se projeta ao futuro incerto com absoluta honestidade moral. Não abandona a centelha que o move. É evidente que o personagem é quase um emblema criado pelo dramaturgo para iluminar um horizonte que não está visível, mas para o qual se deve caminhar como se de fato existisse.

Resistência e lugar de classe

Uma leitura do espetáculo a partir das posições de classe seria interessante. A visada do contexto histórico a partir da solidariedade entre os pobres, em contraste com a representação fantasmática dos poderosos, é muito significativa. Todas as personagens da peça são pobres. O Chão de estrelas é a Broadway dos desvalidos e não é um lugar qualquer. É um bunker periférico, o espaço da invenção desobediente e da reversão da precariedade em imaginação política. Clécio é um artista da classe baixa intelectualizada. Fininha é um soldado raso, assim como toda a tropa é rasa na posição hierárquica. Nas cenas do quartel não figuram os que de fato estão nos lugares altos do mando. Mesmo um censor é anunciado como aquele que cumpre “ordens de cima”.

Palavra e espetacularidade

Parece pacífico que o espetáculo encenado por Kleber Montanheiro, seus parceiros e parceiras de criação, tem grande efeito. A montagem é mobilizadora, liga em alta voltagem um tipo de relação sempre buscada por artistas da cena. Nela é possível sentir que em geral aderimos coletivamente ao que vem do palco. Nós gostamos do espetáculo e o espetáculo gosta de nós. A Cia. da Revista se apropria do espírito e da ossatura do show de variedades com um empenho apaixonado e confirma a vocação para a gramática da cena musical.
As convenções do teatro de revista são retomadas no desejo de encontrar os modos próprios do musical brasileiro. Nas circunstâncias de produção e subvenção, hoje confusas na cidade de São Paulo, é um desafio. Que o Vivencial os inspire.
Convenção não é modelo, ao menos não para o teatro vivo. Nesse aspecto, talvez o resultado mais valioso que o grupo alcança em Tatuagem não deva ser procurado nas estratégias, assim ou assado, de apropriação das convenções. Elas estão lá e acolhem o projeto.  Estão lá o humorismo e a crítica musicada, cenografada, coreografada, dançada, vestida com os figurinos do cômico corrossivo e da ironia.
O que se pode dizer sobre aquele ótimo efeito da encenação é que o grupo faz das convenções mais que a mera reposição da forma, com temas novos. O mais interessante e o que garante a teatralidade que anima a plateia talvez seja algo ainda mais sutil, a concepção de personagens a partir de uma paisagem humana nova, que não havia conquistado cidadania no teatro. Pais bichas, dilemas amorosos entre homens, a discussão sobre as dobras da sexualidade e a verificação das relações entre poder e comportamento – assuntos do espetáculo – são uma novidade, ao menos nos termos em que vivemos esses temas hoje. É uma realidade informada nas décadas mais recentes, entre outra coisas, pela emergência das políticas de identidade. Salvo engano, o trabalho da Companhia dialoga com essa sociabilidade relativamente nova, em formação.
Além da ampliação do quadro que comporta quem pode ser representado no palco, o espetáculo atualiza as demandas estéticas. O elenco é chamado ora a compor personagens com maior profundidade existencial, ora a montar tipos que em geral são objetos de crítica. É uma tarefa cumprida não só com as técnicas de atuação mas também com algo que está além da técnica: a ânima que nos parece verossímil, fruto de uma alegria e espontaneidade verdadeiras. Para as atrizes e atores, a necessidade de manter o jogo aceso sem desvirtuar a forma é uma busca que nos parece sempre em pauta. E de fato o empenho nessas direções diferentes está entre as melhores qualidades do espetáculo. Quanto a isso, a orquestração feita pelo diretor nos chega fresca. Ainda que haja um esquema, não nos parece esquemático.

Texto-cena, texto x cena

Paradoxalmente, na sintonia fina estas qualidades criam um impasse na encenação. O andamento ágil e o apelo espetacular imediato – coisas esperadas no gênero – concorrem com o que no texto há de mais vertical, e que não é alcançado nessa dinâmica e no tom cômico hegemônico no espetáculo. Dito de outra forma, seria preciso perguntar se as questões que pautam a ação estão realmente visíveis e intensificadas.
Se este pressuposto permanecer de pé, propromos que o capítulo textual, e nele o plano de pensamento, poderia frutificar com maior vigor na cena. O que nos leva a outra questão. Seria inócuo, além de injusto, dizer que este impasse impede o espetáculo. Não se deve tratar o arranjo nestes termos, mas talvez valha a pena pensar sobre como a forma assim arranjada resulta.
Para começar por um princípio ético sempre útil nesses casos, trata-se, evidentemente e antes de tudo, de uma escolha. E ao escolher, como esperado, a dinâmica ligeira que o gênero pede, a encenação de Kleber Montanheiro abraça muito bem o plano geral da ação, mas vê escorrer as dobras e nuances do texto. O musical, o teatro de revista, tendem a dramaturgias objetivas e dinâmicas. Seu maior interesse não está em verticalizar debates ou formalizar os planos íntimos da ação. O interesse da revista é a informação pontual, o desenho ampliado da cena, e seus efeitos espetaculares imediatos. Deste argumento podemos pensar em dois desdobramentos. Podemos, por um lado, dizer que há incompatibilidade de princípios entre texto e cena. Por outro lado, qualquer espectador regular de teatro sabe que já há muito tempo a cena liberou-se de servir ao texto. Dessa maneira, é legítima a escolha deliberada da direção e não há dúvida de que, nesses termos, a montagem segue bem sustentada e bem apresentada.
 A legitimidade desta abordagem não apaga, no entanto, os seus desdobramentos. Por exemplo, é curioso como o gosto pela caracterização ampla das personagens cria algumas fricções e estranhamentos e, com eles, valores e leituras que se impõem.  O mais saliente vem da estereotipia, quando aquele desenho ampliado alcança quase que a condição de caricatura. Já é da natureza do gênero o gosto pela caricatura e pela paródia. Mas é preciso perceber como a operação pode nos chegar nesta dramaturgia particular. É o que acontece, por exemplo, na entrada do núcleo familiar de Fininha. Compreende-se que ali a montagem quer configurar a vida que corre em outro tempo e perspectiva. Mas a representação das mulheres como mensageiras do atraso dá o que pensar. A tia velha, sobretudo, é concebida já como figura grotesca, talvez porque represente ali a voz da autoridade que se combate. O mesmo vale para o censor. Embora a crítica seja justa, ao desumanizá-lo, desumaniza-se também o conflito que ele carrega.
No mesmo tema das tipificações talvez valha a pena pensar no repertório musical emprestado da banda As Baías, fundamental ao espetáculo; e de como se caracteriza através da música o espaço de ficção, que também é um espaço real – Recife, Olinda, Pernambuco.  Estaria aqui ainda a questão do sotaque na composição das personagens, algo de difícil contorno no teatro, mas que num espetáculo em que a fala local é elemento caro, passa a ter muita importância, inclusive do ponto de vista político.

Utopia, distopia

Em seu imaginado rolê pelo futuro o poeta repõe, no roteiro de Lacerda, o tema do início: “Que venha o futuro. Quando os jovens estiverem velhos e as dores estiverem contidas estaremos no futuro”. O espetáculo projeta esperança mas atualiza a imagem de um futuro brasileiro adiado.
Nessa direção, nós, em 2024, somos o sumo do Brasil incerto que se vislumbrara na esperança irradiada a partir daquele Chão de estrelas. No traçado histórico que vem do final dos anos 1970 a hoje há vários momentos angulares. Há 2013 – ano de estreia do filme – e a inflexão nacional em torno do que seria a militância política. Há 2016 e o golpe institucional que derrubou a sequência minimamente progressista das gestões de esquerda. Há 2018 e a legitimação institucional do projeto que chegou ao poder com a vigilância que conhecemos e a vontade de extermínio da inteligência crítica e da arte, tão bem figurados no espetáculo. Há 2022, quando ao menos no campo institucional acontece o realinhamento da democracia mínima que temos. É também o ano de estreia do espetáculo da Cia. Da revista.
Neste intervalo temporal entre o final da década de 1970 e hoje, pode-se dizer sem nenhuma certeza que os chamados por democracia, por liberdade e por direitos que o espetáculo acende estão neste momento em alta na disputa de valores em que vivemos. O   “vencer”, por provisório e instável que seja (e quando não o foi?), deu-se já sob outros olhares e modos de fazer política diferentes daqueles que a peça retrata. Deles emergiram, de uma maneira organizada, o varejo de micropoliticas que respondem certamente às questões ligadas à liberdade comportamental, ao reconhecimento das identidades, à problematização do tema racial, das discussões de gênero e suas variantes. Com perdas e ganhos, do Chão de estrelas às paradas do orgulho de hoje, a luta política descentrou-se. Deslocou-e dos projetos de mudança radical que não puderam ser cumpridos e que neste momento definitivamente não estão no horizonte. Há uma derrota sendo vivida, mas também há tentativas de reinventar as formas de intervenção polítca. Esta é a melhor notícia, com todas as suas contradições. A notícia não tão boa é que por outro lado as forças sociais que sequestraram e assassinaram corpos, ideias e comportamentos também se renovaram e estão bem afirmadas. A péssima notícia é que a contestação e o protesto à ordem estão sendo feitos neste momento não pelos humanistas e libertários de boa fé, mas pela direita conservadora. A direita é a força política que mais tem crescido nos últimos anos.
Por isso, entre outras coisas, Tatuagem é, além de um espetáculo de teatralidade viva, um lembrete sobre os impasses brasileiros nunca resolvidos. E, particularmente, sobre formas de resistência parceiras da alegria, da invenção, das pulsões de vida. Não é pouco.
TATUAGEM foi apresentado na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba nos dias 27 e 28/3/2024.
Ficha técnica:
Do filme de Hilton Lacerda. Adaptação, Direção, Cenários e Figurinos: Kleber Montanheiro; Direção Musical: Marco França; Músicas: As Baías – Música composta – Tatuagem: Assucena; Iluminação: Gabriele Souza; Desenho de Som: LABSOM – Kleber Marques; Assistente de Direção: João Victor Silva; Co-figurinista e Direção de Ateliê: Marcos Valadão; Cenotecnia: Evas Carretero; Microfonistas: Eder Souza/Brenda Umbelino; Direção de Produção: Movicena Produções (Jota Rafaelli); Elenco: André Torquato, Bibi Wine, Cleomácio Inácio, GuRezê, Júlia Sanchez, Lua Negrão, Lucas Truta, Mateus Vicente, Natália Quadros, Roma Oliveira e Zé Gui Bueno; Músicos: Canhestro, Caro Pisco, Gabriel Hernandes e Wagner Passos. Companhia: Cia da Revista (@ciadarevista)
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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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