Quando tocamos alguém, somos na verdade iludidos pela sensação do toque. Existe um “espaço entre” que nunca é vencido, regido por forças materiais incontornáveis. Aí está um limite da Física. Mas, ainda que ilusório, esse toque move nossos afetos, orienta nossos desejos e, quando nos falta, sentimos angústia. c h ãOespetáculo da cia Improvável, dirigida por Marcela Levi e Lucía Russo, dialogando com a materialidade do ar, cria a mesma sensação do toque em corpos que estão aparentemente distantes. Entre o palco e a plateia. Dançarinos e público.

Ao chegarmos na sala, encontramos um dos dançarinos sentado em uma das poltronas disponíveis para o público (que poderia perfeitamente ser parte dele), um dançarino ao piano de costas para a plateia e um dançarino se movimentando como um felino. Outros começam então a irromper na cena, executando partituras relativamente curtas, e se retiram avisando: “vou me retirar agora, como um fantasma”. A cada nova aparição, ainda que mantenham as mesmas notas e notações no pentagrama de suas respectivas partituras, são outros fantasmas, pois chegaram em um território que já foi completamente reconfigurado. Reconfiguração que é feita propondo novos agrupamentos dos mesmos elementos. Novos remixes com os mesmos samples.

O coletivo explora aspectos da teoria musical, da música incidental, da música conceitual e da música pop. Criam-se paisagens sonoras que ressignificam e reposicionam aquilo que vemos no palco e, em certo ponto, interrompem aquilo que esperamos como continuação. Povoados na maior parte do tempo pelo piano percussivo do dançarino-pianista e pelo sapateado expansivo do dançarino-público, sampleiam e remixam clássicos de diferentes épocas, levando-os a lugares que os tornam quase irreconhecíveis.

Esse terreno instável, sobre o qual o espetáculo passeia, é uma das grandes potências do que a cia traz nessa proposta, que evidencia a enorme capacidade de transformação e as possibilidades de modulações que há onde não existe um norte aparente. Não à toa, o vibrato, um dos elementos musicais explorados, parece tão caro ao trabalho. Porém, eu chamaria atenção para outro elemento musical que se destaca no chão construído pela peça: o silêncio.

Apesar de a maior parte da experiência vivida com c h ãO ser bastante ruidosa e mergulhada em inúmeras ambiências sonoras e musicais, ou talvez por isso mesmo, o silêncio se torna bastante destacado pelo contraste. Não apenas o silêncio relacionado ao sentido da audição, mas a todos os outros. Neste ponto, para além do fato de o grupo ter concebido o trabalho se recolhendo juntos durante o lockdown, preciso destacar o quanto a experiência é atravessada pela pandemia da COVID-19. Essa experiência traumática compartilhada recentemente foi o chão no qual nasceu o espetáculo.

O espetáculo Chão está na programação do Festival de Teatro do Agreste 2024. Foto: Lina Sumizono

O grupo tentou encontrar formas de fazer esse corpo, que experimentava a tensão da pandemia, vibrar sem ignorar a apatia em que o contexto nos jogava. Mas, também, parece propor uma resistência à urgência como experiência temporal – modo que se fortaleceu pelo excesso de streamings, lives, redes sociais e necessidade de contato durante o período em que precisamos todos nos isolar para nos protegermos de uma doença nova e mortal. E essa resistência se manifesta na pausa.

O silêncio é um elemento exigente na música e fora dela. A pausa, a suspensão, a espera angustiam e desestabilizam. Sobretudo num contexto de aceleração crescente, como nosso tempo, e na concepção de modernidade e desenvolvimento à qual temos nos apegado enquanto sociedade. Ao parar, o barulho do silêncio se impõe. E o grupo não foge dele. Ao contrário, organiza as coisas de forma a evidenciar a ruptura, tanto ao interromper completamente, ou quase, a ambiência sonora, quanto ao assumir um ligado, ou melhor dizendo, um glissando, em muitos compassos em que nenhuma nova informação é acrescentada, prologando assim a pausa.

Essa escolha demanda do público um esforço para ficar. É preciso superar a angústia do silêncio para então testemunhar os solos que irrompem dos fantasmas no palco. Pois, cada um dos dançarinos encontra um espaço, dentro da repetição, para saltar, solar e retornar ao pulso coletivo. Se o público escolhe ficar, ele é presenteado com esses picos de energia que irrompem de cada um dos corpos. E essas demonstrações individuais acabam por integrar ainda mais cada performer ao coletivo que lhe dá suporte. Jazz.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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