“Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”, escreveu Álvaro de Campos.
Apesar da cruel verdade de seus versos, o heterônimo de Fernando Pessoa os escreveu pois não pode conhecer uma exceção que, talvez, confirmasse sua regra. Falo dos 111 cartões de amor pintados por Alberto da Veiga Guignard dedicados à pianista Amalita Fontenelle, criados entre 1932 e 1937, e atualmente expostos no Museu Mineiro, em Belo Horizonte.
Na exposição intitulada De Guignard para Amalita, graças a Adelaide, os cartões estão ao alcance de todos até o dia 9 de novembro, com entrada gratuita. E contam uma das mais interessantes histórias de amor entre artistas brasileiros.
O pintor e a pianista
Nos anos 1980, foi descoberto entre os pertences do pintor fluminense Guignard (1896-1962) um conjunto de desenhos e cartões ilustrados que ele fez para uma pianista carioca chamada Amalita Fontenelle – de quem poucos tinham ouvido falar.
Mas, seus amigos e familiares notaram que pelo empenho que Guignard colocou na produção das peças – que têm a mesma qualidade de seus quadros mais importantes – havia uma história maior de amor e, como se soube em seguida, desencanto.
O álbum estava sob a guarda de Adelaide Guerrini, uma nora do escritor Oswald de Andrade, amigo de Guignard, que o recebeu das mãos do próprio artista. Nem Adelaide nem ninguém nunca soube dizer se os cartões foram criados pelo pintor e nunca enviados ou se ele os enviou e lhe foram devolvidos. E quem teria sido a misteriosa Amalita que encantou, e talvez, tenha esnobado o amor de Guignard?
Sabemos que Guignard nasceu com o defeito congênito do lábio leporino e não tinha o céu da boca, algo que lhe causava grande desconforto. Mesmo assim, na juventude, ele fora casado com outro pianista, origem russa, chamada Ana Doring, filha da dona da pensão em que ele morou na Alemanha. Por algum motivo, a jovem o abandonou ainda durante a lua de mel, em Florença. Consta que pelo resto da vida, ele carregou uma mecha de cabelos da esposa.
Quem foi Amalita?
E, desde que voltou ao Brasil, não se entregou publicamente a nenhum outro romance. O caso, provavelmente platônico, com Amalita durou cinco anos e resultou numa produção espantosa e inspirada de Guignard.
Os cartões, escritos em português e francês, são cuidadosamente ilustrados, com desenhos delicados que aludem ao universo da música e da pintura. Além de declarações de amor, trazem mensagens de Natal, Ano-Novo e aniversário. Segundo matéria publicada na revista Época, em 2017, por Marcelo Bortoloti, o romance durou pouco e acabou em fogo:
_Segundo as cartas, Guignard viu Amalita pela primeira vez num concerto do Theatro Municipal do Rio. Ela tinha 23 anos, e ele 36. Depois de uma troca rápida de olhares, o pintor a seguiu no bonde, mas perdeu seu rastro. Continuou frequentando o mesmo bairro sem sucesso.
No ano seguinte, encontraram-se por acaso num baile de Carnaval, dançaram e se conheceram. Ele soube que ela era estudante de piano, tinha duas irmãs e morava no Catete. Passaram a sair juntos, num relacionamento aparentemente casto: “Namorados que trocam beijos com os olhos”, escreveu Guignard. O pintor ficou completamente apaixonado: “Saberá ela que a amo?”, escreveu em um dos cartões.
Neles, confidenciava que a amada inspirava sua pintura: “Minha palheta fica mais alegre, mais clara, mais colorida”. Dois anos depois, parece ter havido um rompimento. Uma das cartas tem marcas de fogo. O pintor escreveu a Amalita: “Sentirei muito sua falta pois já considero você inclusa na minha vida. Os primeiros momentos serão terríveis”, escreveu Bortoloti.
À época, a revista investigou o destino de Amalita e conseguiu solucionar parte do mistério. Ela era carioca, filha de militar – e seu final foi tão melancólico quanto o do pintor. Amalita morreu solteira, nove anos depois da morte de Guignard, aos 62 anos de idade. Não deixou bens nem filhos.
O que restou do amor
Mas deste amor fugidio, o que restou não foi pouco. Todo o material do álbum guardado por Adelaide foi adquirido em 1987 pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais e incorporado ao recém-criado Museu Casa Guignard.
A atual exposição no Museu Mineiro, portanto, é uma remontagem da ocupação homônima realizada no início deste ano no Museu Casa Guignard, em Ouro Preto. Além dos cartões originais de Guignard, o público poderá conferir pinturas, bordados e uma projeção que apresenta a primeira montagem.
Museu Mineiro
Inaugurado em 1982, o Museu Mineiro possui um acervo diversificado de objetos históricos e culturais de Minas Gerais. O espaço exibe obras de artistas consagrados como Manoel da Costa Ataíde, Yara Tupynambá, Amílcar de Castro, Inimá de Paula, Lótus Lobo e Guignard, entre outros.
A exposição de longa duração “Minas das Artes, Histórias Gerais” também está em cartaz, com destaque para uma vasta coleção de arte sacra dos séculos XVIII e XIX, a bandeira da Inconfidência Mineira e manuscritos originais de Guimarães Rosa.
Exposição “De Guignard para Amalita, graças a Adelaide”
Onde: Museu Mineiro – Galeria de Exposições Temporárias II (avenida João Pinheiro, 342 – Belo Horizonte)
Quando: visitação até 9 de novembro de 2024
Quanto: entrada gratuita