Não é fácil pensar em outra obra de arte brasileira que sintetize tão bem o ano de 1983 quanto Onda Nova, o polêmico longa dos diretores Ícaro Martins e José Antônio Garcia, lançado na 7ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo daquele ano, mas logo proibido pela Censura do regime militar.
Temas como feminismo, identidade LGBTQIAPN+, uso de drogas, sexualidade e redemocratização do país aparecem de forma extrema no filme. Onda Nova é uma comédia erótica e anárquica que reúne histórias das jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, um time de futebol feminino recém-formado em plena ditadura militar, no ano em que o esporte foi regulamentado no Brasil, depois de ter sido banido por 40 anos.
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Protagonizado por Carla Camuratti e Cristina Mutarelli, o filme, que tem roteiro assinado pelos diretores, provocava a moribunda ditadura militar com debates sobre gênero e moral, enquanto as jogadoras vivem seus dramas pessoais e esportivos.
1983 também foi o ano da chamada “Democracia Corintiana”, um movimento de horizontalização das decisões no clube paulista, criado pelo recém falecido publicitário Washington Olivetto e liderado por jogadores como Sócrates, Casagrande e Wladimir.
Estes dois últimos fazem participações surpreendentes no filme, inclusive em cenas de sexo. Também participam do filme artistas como Caetano Veloso, Regina Casé e o locutor Osmar Santos, que foi a voz dos grandes comícios das Diretas Já, que iriam eclodir no país no ano seguinte.
Trilogia do Desejo
Onda Nova é o segundo longa de uma trilogia dos diretores e será relançado nos cinemas em parceria inédita entre a Tanto e a Vitrine Filmes no primeiro trimestre de 2025. Apesar de não ser uma “pornochanchada” tradicional, o filme foi produzido segundo as regras da arte da Boca do Lixo, o núcleo de produtores e diretores de filmes de baixo orçamento no centro de São Paulo nas décadas de 1970 e 1980.
Entretanto, como no longa de estreia dos diretores – O Olho Mágico do Amor – e nas outras obras, o filme rechaça o moralismo sexista dessas produções comerciais. (A trilogia dos diretores é encerrada com A Estrela Nua, de 1985).
“É um filme onde o desejo assume o protagonismo, define e conduz as personagens e a narrativa. Mesmo não tratando diretamente de política, ao colocar o desejo como afirmação de identidade e de vida, ONDA NOVA é a própria negação da ditadura vigente na época. Por isso, a censura não foi apenas a uma cena ou outra, mas ao filme inteiro. Foi considerado ‘amoral’ e interditado integralmente”, conta Martins.
Relançamento
A seleção do filme para a seção “Histoire(s) du Cinéma” do 77º Festival de Cinema de Locarno deu a Júlia Duarte – sobrinha de José Antonio Garcia, que infelizmente faleceu em 2005 – a oportunidade de iniciar seu projeto de restauro das obras do tio. Tanto o trailer quanto o cartaz, que haviam desaparecido, foram refeitos.
Aliás, o novo pôster foi feito por Helena Garcia, artista gráfica e uma das filhas de José Antonio. Graças ao trabalho conjunto da família com o outro diretor, Ícaro (Francisco) Martins, ONDA NOVA agora poderá ser assistido novamente em todas as telas, com a merecida qualidade.
“Em 1984, numa entrevista a Leon Cakoff, fundador e então diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Zé Antonio declarou: ‘Nosso filme é de vanguarda, só será entendido daqui a dez anos’…Talvez tenha demorado um pouco mais, mas ele tinha razão”, disse Martins.
Restaurado e remasterizado em 4K por Aclara Produções Artísticas e a família de José Antonio Garcia, com a colaboração da Cinemateca Brasileira / SAC Sociedade de Amigos da Cinemateca, Zumbi Post e JLS Facilidades Sonoras.