Por Luiz Prado do Jornal da USP
Só é possível imaginar os impactos dos grandes acontecimentos da história na vida das pessoas quando ajustamos nosso olhar para as pequenas histórias. Para as trajetórias individuais que, reunidas, transformam-se em um mosaico capaz de revelar as múltiplas camadas de um evento às vezes tão avassalador que desafia a compreensão – como a perseguição, o confinamento e o extermínio de milhões de pessoas motivados pelo racismo. Ações que colocaram em movimento imensas massas populacionais, acionando fugas através de continentes e oceanos, tendo a sobrevivência como o único objetivo.
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É disso que trata o Colóquio Internacional Travessias: o Legado dos Pioneiros Refugiados do Nazifascismo, que acontece nos dias 19, 21 e 22 de novembro e 3 de dezembro, no Instituto Butantan, em São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e on-line. O evento é organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da FFLCH, coordenado pelo professora Maria Luiza Tucci Carneiro.
A intenção do conjunto de mesas do colóquio é apresentar a contribuição que refugiados do nazifascismo – judeus e não-judeus – trouxeram para a sociedade brasileira, atuando nos trópicos como cientistas, artistas e escritores. Uma reunião de nomes que já eram reconhecidos em seus países de origem ou que chegaram ainda crianças ao Brasil e, estabelecendo-se aqui definitiva ou temporariamente, destacaram-se em suas respectivas áreas de atuação.
Toda essa atividade corresponde aos primeiros resultados de uma enciclopédia que está sendo elaborada sob coordenação da professora Tucci. Batizada de Travessias – Enciclopédia de Artes, Literatura e Ciências: o Legado dos Refugiados do Nazifascismo, trata-se da reunião de histórias de vida desses refugiados que adotaram o Brasil como lar. Elaborada com longos verbetes de 25 a 30 páginas, cada um deles escrito por um autor convidado, a obra reúne nomes consagrados e jovens pesquisadores, com a estimativa de trazer 520 personagens, número que ainda pode aumentar, segundo a professora.
Não se trata do início de uma caminhada, mas da etapa mais recente de uma longa trajetória. “Esse é meu projeto de vida, porque as primeiras informações sobre esses refugiados surgiram em decorrência do meu doutorado”, conta Tucci em entrevista ao Jornal da USP. A pesquisadora se refere à sua tese, defendida em 1987, que foi publicada em livro com o título O Antissemitismo na Era Vargas. Foi a partir dela que a professora começou a ser procurada por refugiados interessados em tornar públicas suas histórias.
Ao longo dos anos, esses relatos foram acrescidos da documentação que a professora reuniu a partir de pesquisas no Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp). Com esse material, em 1996 o Centro Cultural São Paulo (CCSP) abrigou a exposição Brasil: Um Refúgio nos Trópicos, que, de acordo com Tucci, compõe a matriz da enciclopédia. O catálogo da exposição – hoje um livro de referência – já trazia informações sobre cientistas, artistas e escritores de vanguarda atuantes em áreas variadas do conhecimento, oferecendo a base para o que viria a ser o projeto Travessias.
Atualmente, grande parte do material reunido sob supervisão da professora está armazenada no Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah), que deve receber também o conteúdo da enciclopédia. Hoje, o Arqshoah contém cerca de 6 mil documentos digitalizados e 420 testemunhos de sobreviventes que vieram para o Brasil, parte deles publicada na série de livros Vozes do Holocausto.
Para a tarefa da enciclopédia, Maria Luiza convidou colaboradores encarregados da coordenação de conteúdo, organizando-os por áreas de conhecimento ou pela nacionalidade dos refugiados. Entre eles estão nomes como o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Boris Kossoy, responsável pelos refugiados que se dedicaram à fotografia. E também Karina Marques, professora da Universidade de Poitiers, na França, encarregada dos refugiados francófonos. Trabalhando com os coordenadores estão os autores dos verbetes, parte dos quais estará presente no colóquio.
“Nós estamos basicamente abrindo arquivos e divulgando”, explica a professora. Segundo Tucci, as apresentações programadas darão conta dos verbetes da enciclopédia que já estão prontos e foram revisados. Cada um é dividido em quatro seções, tratando da comunidade de origem dos refugiados, do momento de ruptura – quando membros da família são presos ou direitos de cidadania são retirados, por exemplo –, da opção pelo Brasil e do legado deixado em suas áreas de atuação.
“Acho que, se conseguirmos essa lista de 520 verbetes, com cruzamentos nestas três grandes áreas, teremos uma contribuição importante, pela documentação e conhecimento inédito que estamos produzindo”, comemora a professora.
Ciências, artes e literatura
A abertura das atividades do Colóquio Internacional Travessias: o Legado dos Pioneiros Refugiados do Nazifascismo acontece no dia 19, terça-feira, às 9h15, no Instituto Butantan. Todas as mesas do dia serão dedicadas aos profissionais da saúde. Na primeira mesa, às 10h30, serão contadas as histórias dos refugiados que participaram da trajetória do próprio Instituto Butantan, com destaque para a implantação e a consolidação dos estudos de genética, nos quais surgem os nomes de Gerta von Ubisch, Giorgio Schreiber e Willy Beçak. “Nossa parceria com o Instituto Butantan e a descoberta de documentos inéditos em seu Centro de Memória foi uma revelação”, comenta Tucci.
A segunda mesa do dia 19, às 13h30, por sua vez, abordará a psiquiatria, a psicologia e o trauma dos refugiados. A professora Tucci chama a atenção para a presença de Marcos Pacheco Toledo Ferraz, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-diretor do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Ferraz falará sobre Jacques Nirenberg, idealizador da musicoterapia aplicada à psiquiatria. A terceira mesa, às 15h45, por fim, trará a contribuição dos refugiados para a área da saúde pública.
Já no dia 21, as mesas acontecem no Prédio de História e Geografia da FFLCH. O foco serão os “artistas pioneiros da modernidade”, como chama Tucci. Artes cênicas, música, artes plásticas, ilustração e design ganham atenção, em mesas que abordam as trajetórias do polonês Zbigniew Ziembinski no teatro, Fred Jordan no design de livros e Walter Levy na pintura, entre outros.
Entre os palestrantes do dia estará Moreno Stedile, pesquisador do LEER e da União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social (Unibes), que falará sobre Miécio Askanazy, cuja galeria de arte no Rio de Janeiro se tornou uma espécie de centro de refugiados para os artistas vindos da Europa. Já a professora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP Helouise Costa trará seus apontamentos sobre o fotógrafo austríaco Kurt Klagsbrunn. A professora Tucci também se apresenta no dia 21, tratando das atividades de artistas refugiados que tiveram papel importante no mercado editorial, sendo “ilustradores do Brasil moderno”.
Para o dia 22, também no Prédio de História e Geografia da FFLCH, estão previstas mesas com destaque para os escritores “pioneiros de novas linguagens”. Literatura, filologia, crítica de arte e teologia surgem nas trajetórias de refugiados como Paulo Rónai, Herbert Lichtenstein, Hannah Lévi Deinhard, Michael Trumann e Hugo Schlesinger. Este último não só um reconhecido editor, sublinha a professora, mas também responsável por inovar a estrutura das salas de cinema da cidade de São Paulo.
Haverá ainda, no dia 3 de dezembro, a partir das 9h30, uma programação on-line dedicada aos refugiados francófonos. A professora Karina Marques fará a apresentação geral da equipe de trabalho e passará a palavra para pesquisadores que tratarão das trajetórias de personalidades como a atriz Vera Korene, o pintor, desenhista e músico suíço Jean-Pierre Chabloz e o ator, diretor e cineasta Louis Jouvet.
Rotas de fuga e colaboracionismo
De acordo com a professora Tucci, a reunião de todas essas biografias permite a reconstrução das estratégias e das rotas de fuga usadas pelos refugiados, um dos elementos que deverão estar presentes na enciclopédia. “É inspirador, porque você tem cenários, dramas e traumas”, conta a professora. “Nós resgatamos a trajetória, a micro-história desses exilados, dos que voltaram e dos que permaneceram, deixando um amplo legado para as artes, as ciências e a literatura.”
A constituição do Brasil como destino para os refugiados judeus, explica a pesquisadora, foi fruto das restrições à migração impostas nos Estados Unidos, ponto de chegada preferencial graças à grande comunidade organizada no território, sobretudo em Nova York. Impossibilitados de entrar nos Estados Unidos, os refugiados tiveram de buscar outros locais onde podiam encontrar redes de apoio compostas por familiares e amigos, como o Brasil.
Representação da rota de fuga do banqueiro e político Hugo Simon e sua esposa Gertrud Simon. O casal deixou Berlim em 1933, embarcou em Vigo, em 3 de março de 1941, e seguiu para o Rio de Janeiro. Pesquisa e elaboração do mapa: Tatiane Gomes da Silva (Bolsista Unibes/Travessias)
Tucci salienta, contudo, que o fato de os refugiados chegarem ao País não indica que o Brasil tenha aberto as portas para os judeus. Ao contrário. Segundo a professora, o Brasil foi um País colaboracionista dos regimes nazifascistas da Europa. “O Brasil endossou e projetou para seus diplomatas circulares secretas proibindo a entrada de judeus”, destaca. “Não apenas durante o governo de Getúlio Vargas, mas também durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, mesmo após a abertura dos campos de concentração e das denúncias das atrocidades cometidas pelos nazistas e seus colaboradores.”
Essas circulares – foram encontradas 26 delas, indica a pesquisadora – impediram a entrada no País de quase 17 mil judeus, que tiveram seus pedidos negados pelo governo brasileiro. Muitos dos que conseguiram, atestam os testemunhos reunidos por Tucci, precisaram recorrer a certidões de batismo falsificadas, que permitiam aos judeus se passar por católicos e driblar a proibição.
“O Brasil tem relação com o Holocausto?”, questiona a professora. “Sim. Primeiro porque temos vítimas, judeus brasileiros que estavam na Europa. E, segundo, porque tínhamos essas circulares secretas contra os judeus, mostrando que o Brasil, durante as gestões Vargas e Dutra, endossou políticas secretas antissemitas como políticas de Estado.”
Para Tucci, não se trata apenas de relembrar o passado. O perigo dos discursos de ódio e das políticas racistas está aí, pontua. E, se temos uma legislação que previne a adoção desses discursos pelo Estado, não temos, contudo, mecanismos que eduquem corretamente para questões como o Holocausto. “É preciso chegar às escolas, universidades, centros culturais, museus”, frisa a professora.
É nessa direção que seguem a enciclopédia e o colóquio, que já tem mais quatro edições previstas para 2025 e 2026, conforme adianta Tucci. “O projeto Travessias é, ao mesmo tempo, um ato de repúdio e um tributo ao legado”, comenta. “É uma frente que vem alertar a sociedade brasileira, e principalmente as universidades, do perigo do endosso aos discursos de ódio, não apenas aos judeus. São duas frentes, de combate ao ódio e à intolerância e de promoção do legado, de mostrar a contribuição desses refugiados, que não podem ser silenciados simplesmente porque eram judeus ou comunistas”, finaliza a professora.
Colóquio Internacional Travessias: o Legado dos Pioneiros Refugiados do Nazifascismo
Quando: dias 19, 21 e 22 de novembro e 3 de dezembro.
Onde: Museu Biológico do Instituto Butantan (Avenida Vital Brasil, 1.500, Butantã, em São Paulo e Prédio de História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, em São Paulo).
Quanto: inscrições são gratuitas