Notória galhardia

Disse um mendigo, um homem puro,  sem emprego, que ontem  vislumbrou em Sevilha, entre carregadores de couve, na Feira do Charco, o fidalgo Dom Quixote sob uma capa de chuva, acompanhado de seu fiel escudeiro, que empurrava uma bicicleta, e o seguiu  pelas ruas cheias, ao longe, tamanha a galhardia daquele andar distante, o que possibilitou-o mesmo roubar uma fruta em sua correria, bem como molhar-se com a água esverdeada da fonte, antes de se aproximar do fidalgo, que para sua surpresa enxotava um cachorro – ainda que com certa mesura:

_É você?

Era de Aquário

Aquário morreu foi no nascedouro, pois é sabido que o barro da vilania nesta terra, tende a inibir quaisquer auspícios cósmicos.

Vejo pelos raivosos em minha volta. Andam tão atentados agora, que Jesus precisaria multiplicar-se junto com os pães.

E se alguém duvidar da nossa perversidade, ouçamos todos o que ouvi na última madrugada:

_Cuspam em mim!                                 .

Pedia o mendigo morto, tarde da noite:

_Mas não me matem!

Repentino

A mosca se esbalda como se lutasse com alguém do “nível um” antes de enfrentar o grilo do parreiral. O avô levanta a mão em várias etapas. Tenta espantar o inseto, lenta, muito lentamente, com a velocidade de um aceno. Quem passa na rua o observa na janela:

_Boa tarde, vô Dito!

Diz confundido, enquanto o homem se condensa à própria letargia. Até terminar o dia, mal irá se mexer.

Para não estorvar seu projeto de morte.

O Cego

Coloca as compotas para trás na geladeira, e o suco de uva, caso o outro tenha sede. Nisto, derruba sem querer o leite, que esbarra na manga puída. Sente o peso dos potes, que põe no armário – deixa na mesa aquele que tem duas bolachas velhas. Desavisado, esconde outra garrafa, agora vazia, atrás do filtro. Come o chocolate aberto de uma vez, sem muita vontade. Logo toca o interfone.

É seu cuidador voluntário.

Carnaval no asilo

Onde estará todo mundo? O lugar está vazio. O velho se atrasou, o relógio marca nove horas da noite. Tem dois colares no pescoço, que achou pendurados na maçaneta. Em seu casaco de Sargento Pimenta a serpentina está enrolada no bolso. Sozinho no salão assopra três vezes o apito – antes avisassem que era matinê.

Depois escuta uma vassoura no corredor.

Uma criança aparece, é a filha entediada da faxineira. Olha para o chão, pois é possível contar todos os confetes desta noite.

Papai morreu dormindo

Papai sempre falava do seu avô, um pacato chacreiro, assassinado porque não denunciou um Maragato, seu conhecido. Cardíaco como eu, na trágica noite da convulsão, ouvi meu pai dizer dormindo:

_As botas!.                                                                                                                                                               Eu dormia. Vi os soldados, estava na chácara. Sabia que queriam o compadre.

Escondi-me no alçapão. Escuto passos truculentos. Ordens reverberam. Um soldado abre a portinhola. Vejo os coturnos.

Ao despertar, descubro que sou um covarde, e que meu pai sempre foi um valente.

Lembro-me de minha última frase no sonho.

_O compadre está no Morro dos Bois!

E as botas não me mataram de susto.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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