Erguida no topo do morro do Alto da Glória, como que permanentemente de olho na cidade que se mexe lá embaixo, a casa onde o escritor Dalton Trevisan, falecido ontem (9), morou por 68 anos é personagem da geografia afetiva e literária de Curitiba.
Durante este tempo todo, foi um peculiar ponto turístico. Uma espécie de farol de onde vazava a luz da excelência em meio a névoa de mediocridade e preguiça. Foi também uma armadilhas de moscas para chatos de plantão que, incansáveis, batiam ali para importunar o autor e servia ainda para provocar medo em crianças: “Ali mora um vampiro”.
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Bom, a casa foi vendida há pouco mais de dois anos por Dalton, depois de quase sete décadas. A gota d’água foi a visita de um “amigo do alheio”, mas certo é que a mudança foi boa para que os últimos anos de Dalton tenham sido seguros e produtivos como foram.
Quem comprou a casa fechou negócio sob a condição de preservar o patrimônio material e imaterial do espaço, ou seja, se comprometeu a mantê-la de pé, ainda que se construa algo no amplo terreno, e a dar um uso cultural ao imóvel que preserve a memória do que ali aconteceu.
E não foi pouco: alguns dos melhores textos em língua portuguesa da era comum foram escritos ali.
Para mim, é reconfortante saber que a casa seguirá onde sempre esteve, pois morei durante anos naquela mesma quadra e faço meu culto particular naquela esquina literariamente sagrada há anos. Mesmo que a obra de Dalton que realmente interessa seja essa que hoje está sob guarda de Fabiana Faversani, um anjo que o céu das letras mandou para a terra, e nas boas mãos da editora Todavia.
A despedida de Dalton vai acionar movimentações do contrato de venda e uso da casa e, assim, a partir do ano que vem, devemos ter novidades imobiliárias e projetuais.
Mas vou aproveitar a ocasião para falar da história anterior deste imóvel, que descobri enquanto pesquisava para meu livro Os Armazéns na Cidade, a Cidade nos Armazéns, escrito a quatro mãos com a professora Cleusa de Castro lançado no primeiro semestre deste ano. O livro pode ser baixado aqui.
Pois a construção na esquina das atuais ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros tem uma história para lá de interessante que se confunde com as mudanças sociais de Curitiba.
Ela foi erguida para ser residência do senhor Arnoldo Graf, um descendente de alemães. Assim que ele se casou com Rudolphina Nitche ainda na primeira década do século 20. Da janela, era possível ver o Passeio Público, primeiro parque de Curitiba, inaugurado no final do século anterior para embelezar a área alagadiça e saneá-la, evitando a propagação de doenças.
A casa de Arnoldo e dona Fina brota no parapeito da calçada e tem cinco janelas, uma bem no corner e dois pares laterais que se abriam, cada qual, para uma das ruas. Tinha um terreno amplo, com arvores e galinheiro. Nela, o casal teve seis filhos: Clara, Albino, Elvira, Adolpho (que morreu com menos de um ano), Bertoldo e Alois.
Arnoldo, porém, faleceu em 1918, com apenas 32 anos, deixando a esposa viúva com cinco filhos e apenas 29 anos. Passado o período de luto, Rudolphina casou-se novamente, desta vez com o senhor Antônio Mathias Monteiro, um lisboeta que era proprietário de muitos terrenos na região da Baixada, que desce do Alto da Glória em direção ao Juvevê. Ele e Rudolphina tiveram mais três filhos: Maria, Thereza e Rodolphina.
No entanto, em 1927, o senhor Monteiro faleceu de “lesão orgânica do coração” aos 53 anos, segundo nota do jornal O Dia. Viúva pela segunda vez aos 38 anos e com oito filhos para criar, dona Fina, como era chamada, precisou se virar.
No ano seguinte, ela transformou a casa em um armazém de secos e molhados. Duas das cinco janelas do projeto original do imóvel viraram portas, e um balcão foi instalado na sala. Os filhos mais velhos passaram a ajudar na rotina de trabalho, e foi assim que o Armazém Graf funcionou durante toda a década de 1930 e boas parte da seguinte no então sofisticado bairro altaneiro.
Naquele período, os armazéns de secos e molhados estavam em muitas esquinas e eram o ramo comercial mais importante antes do advento dos supermercados. O armazém de dona Fina Graf Monteiro foi bem no começo, mas como toda a economia mundial , começou a patinar durante a Segunda Guerra Mundial.
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A historiadora Alice Graf, casada com Ronaldo, neto de Rudolphina, conta que nessa época, para aumentar a renda, dona Fina transformava um dos cômodos da casa em um pequeno salão de jogos, um mini cassino só para os amigos de boa convivência do bairro. “Quando fechava, a sala dos jogos ficava disponível para as pessoas jogarem.”
O jogo, que tinha sido o motor da melhor fase da indústria do entretenimento brasileiro, foi proibido no país em 1946. Ninguém da família sabe se houve jogo clandestino no Armazém Graf, mas, como sou um sonhador, gosto de imaginar que sim, pois deixaria a biografia desta mulher extraordinária ainda mais saborosa. Mesmo “diversificando as atividades”, o armazém durou apenas até o final dos anos 1940.
Aposentada, com os filhos criados e muitos netos, Rudolphina faleceu em 1974. Assim, a história desta casa já seria das melhores se ela não tivesse sido vendida para a família Trevisan e, a partir da década de 1950, se tornado a casa de Dalton Jérson Trevisan, o maior contista de língua portuguesa, o escritor mais importante do país.
Como bem disse o jornalista Jotabê Medeiros em reportagem publicada no site Farofafá, a casa de Rudolphina e Dalton é uma daquelas “edificações que se incorporam ao espírito das cidades de maneira inapelável – não se trata de uma vontade, mas de uma imposição invisível, algum feitiço do destino”.
Vamos ver o que o futuro, sempre a espreita, nos reserva para a mítica “casa do Dalton” e, claro, para todos nós.
Excelente relato histórico de Sandro Moser. Parabéns! Desde 2009, tornei-me vizinho de Dalton Trevisan, e, do meu apartamento no Panorama, via-o dando comida para seu gato, e, de vez em quando, caminhando na região.
Apenas uma correção. A Rudolphina é a que aparece à esquerda na foto e não à direita.
Muito obrigado Isabel. Já corrigido!