Por Luiz Prado do Jornal da USP

Na capa de um velho livro oriundo do Brasil colonial, perdido em um convento construído pela Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, na Vila de Sant’Anna de Mogy Mirim, um tesouro permaneceu escondido por quase 300 anos. Uma coleção de papéis que preservou as músicas mais antigas de que se tem notícia na história do Brasil. Conhecidas como as Solfas de Mogi das Cruzes, essas obras jamais haviam sido gravadas. Até agora.

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Em 28 de novembro passado foi lançado nas plataformas digitais o álbum Música do Brasil Colônia – As Solfas de Mogi das Cruzes (disponível aqui). Trata-se do primeiro registro fonográfico mundial desse conjunto, reunindo sete peças extraídas de documentos datados da década de 1730. Realizada com direção musical e regência do professor Rubens Russomano Ricciardi, do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, a interpretação ficou sob responsabilidade do Ensemble Mentemanuque, grupo de câmara dedicado à música contemporânea e à memória da música brasileira, composto de músicos da USP Filarmônica, orquestra ligada à FFCLRP.

 

O professor recebeu a tarefa de reconstituir as solfas. Um trabalho que envolveu transformar as antigas notações musicais em partituras contemporâneas e reconstruir as partes perdidas ou ausentes nos documentos originais.

O que são Solfas?

Solfa é o nome que foi dado, durante o período colonial, para qualquer papel portador de um registro musical, seja ele manuscrito ou impresso. É uma palavra que remonta à Idade Média europeia e da qual derivam termos como solfejo e solfejar. É um conceito mais amplo do que o termo partitura e, por isso, considerado mais adequado para falar dos documentos encontrados em Mogi das Cruzes. Nestes, há apenas a indicação das vozes do coro e, em alguns casos, de um único instrumento, enquanto uma partitura apresenta todo o conjunto – instrumentos e vozes.

Assista no link abaixo ao teaser do lançamento do álbum As Solfas de Mogi das Cruzes, divulgado em novembro passado:

A maior parte dos documentos que compõem as Solfas de Mogi das Cruzes foi encontrada em 1984, no Convento de Nossa Senhora do Carmo, pelo historiador Jaelson Bitran Trindade. Participando do planejamento de uma exposição do Museu de Arte Sacra de Mogi das Cruzes, ligada à inauguração das então restauradas Igrejas das Ordens 1ª e 3ª do Carmo, um livro setecentista chamou sua atenção. Era uma cópia do foral da Vila de Sant’Anna de Mogy Mirim (primeira denominação do que viria a ser Mogi das Cruzes), documento relativo à constituição e estabelecimento iniciais do povoado.

O que despertou a curiosidade de Trindade não foi exatamente o conteúdo do livro – em si mesmo um objeto de interesse histórico, datado de 1748 – mas sim sua capa. Percebendo que a capa de couro do volume havia sido reforçada, o historiador descobriu um revestimento composto de 28 folhas. Levadas para higienização no setor de restauro da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, revelaram tratar-se de 28 papéis de músicas – ou solfas.

Ainda no mesmo ano de 1984, outro pesquisador, Jurandyr Ferraz de Campos, acharia mais uma folha perdida na capa de couro do livro cópia do foral, que havia passado despercebida por Trindade. E, finalmente, em 1990, mais sete folhas que se mostraram parte do mesmo grupo foram encontradas pelo historiador Isaac Grinberg dentro de uma Bíblia pertencente à Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes. No total, foram reunidos 36 papéis de música.

As Mais Antigas

Examinando a coleção desde o primeiro achado de Trindade, ainda nos anos 1980, o musicólogo Régis Duprat, então professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) – e que em 1995 se tornaria professor titular da USP –, constatou tratarem-se dos papéis de música mais antigos de que se tinha notícia no País. Superavam, em mais ou menos 30 anos, o Recitativo e Ária para José Mascarenhas (1759), de autoria anônima, encontrado na Bahia – documento que pertence hoje ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – e tido até então como a obra musical brasileira mais antiga conhecida.

Foi graças à assinatura de Faustino do Prado Xavier (1708-1800), presente em alguns dos documentos, que se sugeriu situá-los entre o final dos anos 20 e início dos anos 30 do século 18. Xavier, que se tornaria padre em Mogi das Cruzes e depois cônego em São Paulo, atuou como mestre de capela da vila de 1729 até 1731, sendo responsável pela música na Igreja Matriz de Santana e nas demais igrejas sob sua jurisdição. Seu nome consta de alguns papéis, assim como o de seu irmão, Ângelo do Prado Xavier – que não era músico, mas é indicado como copista de algumas das obras –, e o de Timóteo Leme do Prado, do qual pouco se conhece.

Assista no link abaixo ao documentário As Solfas de Mogi das Cruzes, produzido em 2023.

Conforme explica o professor, documentos apontam a existência de elaboração e interpretação musical no Brasil colonial desde o século 16, sobretudo nas localidades vinculadas aos bispados de Salvador, Olinda e Rio de Janeiro. Comprovantes de pagamento por serviços de músicos dão conta dessa produção. Entretanto, não há registro das próprias composições. Todo esse material se perdeu.

“Graças às pesquisas, sabemos o nome dos compositores e dos mestres de capela e temos toda a burocracia em torno das músicas. Mas não as solfas, os papéis se perderam. Não temos chance alguma de reconstituí-las”, conta o docente. “O que existe é a partir das Solfas de Mogi das Cruzes. Esses são os manuscritos mais antigos que sobreviveram.”

Quase Perdidas

Hoje sob a guarda do Arquivo Histórico Municipal Historiador Isaac Grinberg, em Mogi das Cruzes, as solfas quase foram perdidas para sempre. Isso porque seu achado esteve ligado ao processo de tombamento e restauro das Igrejas das Ordens 1ª e 3ª do Carmo em Mogi das Cruzes, que quase não aconteceu.

Dada a descaracterização e o péssimo estado de conservação dos prédios, nos anos 1960 a própria Província do Carmo, dona dos imóveis, e a Prefeitura se posicionaram contra o tombamento, alegando não haver dinheiro para arcar com as despesas e sugerindo a construção de um novo templo, maior e em estilo moderno. Até mesmo um abaixo-assinado de fiéis veio a público pedindo a interrupção do processo.

Foi preciso a intervenção do arquiteto, urbanista e projetista do Plano Piloto de Brasília Lúcio Costa, então diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), para que um acordo fosse firmado e as igrejas pudessem ser restauradas, processo levado adiante nas décadas de 1970 e 1980. Obras concluídas, planejou-se a exposição de inauguração do Museu de Arte Sacra, movimentação que levaria Trindade ao livro do foral.

Reconstrução poética

A gravação das Solfas de Mogi das Cruzes é a etapa mais recente de uma história que começou com a publicação integral e inédita do fac-simile desses papéis de música e da reconstituição de parte das composições encontradas nos documentos. Rubens Russomano Ricciardi foi convidado pelo produtor Déo Miranda, radicado em Mogi das Cruzes, para ser o responsável pela parte musical do projeto, viabilizado a partir do Programa Rumos Itaú Cultural.

Solfas da Ladainha de Nossa Senhora, obra atribuída a Faustino do Prado Xavier, mestre de capela de Mogi das Cruzes entre 1729 e 1731. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Para assessorar o professor na parte histórica, foi chamado o pesquisador Odair Aparecido de Paula, contribuição que resultaria na assinatura conjunta do livro As Solfas de Mogi das Cruzes, lançado em 2022. A edição reuniu apontamentos históricos e partituras que tornam as músicas executáveis por orquestras e corais contemporâneos.

Entre as 36 folhas encontradas por Trindade, Campos e Grinberg, foram identificadas 12 músicas, sete delas completas ou apresentando poucas lacunas. Estas foram selecionadas pelo professor para a “reconstrução poética” – o termo é dele –, registro em partituras e a gravação do álbum. Com exceção de uma cantiga popular, com letra em português, todas as peças são obras litúrgicas, cantadas em latim.

O trabalho de reconstrução musical das sete peças que aparecem no livro e na gravação foi feito pelo docente diretamente dos manuscritos, uma tarefa que ele define como de exegese e hermenêutica. O professor teve auxílio do estudante de graduação da FFCLRP Lucas Pigari, que realizou a transcrição dos documentos, assessorando em sua edição.

A partir das indicações das vozes constantes nas solfas foram elaboradas as partes instrumentais. O professor escreveu as linhas de violino e viola para as músicas em que a presença do instrumental já era identificada e elaborou, para todas as peças, o baixo contínuo. Trata-se do acompanhamento feito por instrumentos com sonoridade mais grave, como o cravo, o violoncelo e o contrabaixo, marca registrada da música feita no período.

A opção de incluir o baixo contínuo, mesmo nas peças vocais com indicação a cappella, levou em conta a importância desse recurso para a música da época na qual as solfas estão situadas. “O baixo contínuo era a prática da época, todos escreviam com esse acompanhamento”, comenta o professor. Ele afirma que, mesmo não recebendo notações escritas, essa realizações harmônicas e melódicas eram tocadas junto aos corais com regularidade, justificando sua reinvenção e inclusão nas partituras.

O professor explica que a noção de “reconstrução poética” é algo novo na musicologia brasileira. O mais comum sempre foi a edição das obras como chegaram até nós, mesmo que o grau de mutilação dos documentos tornasse inviável a interpretação das músicas. Ele é enfático na defesa da posição contrária, a favor da reconstituição das peças, tornando-as acessíveis ao público de hoje.

“Fiz um trabalho de viabilizar a execução contemporânea das obras. Escrevi o que estava faltando tendo em vista as condições poéticas originais”, aponta. “É um exercício de pensar não só a execução das obras, mas também a linguagem de cada compositor, não obstante ser impossível reconstituir suas intenções na totalidade.”

O docente conta que buscou uma reconstrução fidedigna ao estilo da época, à imagem do artesão levantando a parede em ruínas de uma igreja barroca, tendo por inspiração as partes do edifício ainda de pé. “Não existe inovação nenhuma, existe fidelidade histórica”, pontua. “Entrei no estilo de cada composição e escrevi as linhas melódicas e as questões das conduções contrapontísticas da época.”

Cantigas, motetos, antífonas e ladainhas

O resultado sonoro de todo esse percurso histórico que envolveu igrejas ameaçadas, solfas escondidas e reinvenções poéticas pode ser conferido agora. Com 33 minutos e 43 segundos de duração, Música do Brasil Colônia – As Solfas de Mogi das Cruzes abre com a cantiga Matais de Incêndios. Obra anônima e única composição em português, com versos amorosos que se destacam do conteúdo religioso das demais faixas do álbum, Matais de Incêndios é o exemplar mais antigo de música popular brasileira que se conhece.

Com toda a parte vocal completa nas solfas, coube ao docente reconstituir o baixo contínuo e a parte dos violinos. “Eu reconstruí esses interlúdios instrumentais tendo em vista os estilos, as harmonias e os recursos de encadeamento do restante da música”, conta. Apesar de só haver apontamentos das partes vocais nos papéis, as indicações de pausas coletivas para as vozes fizeram-no ter certeza de que havia originalmente acompanhamento musical, justificando sua inclusão.

Seguem-se peças associadas provavelmente às práticas religiosas da Irmandade do Carmo, compostas de integrantes da Ordem. A primeira é Ex Tractatu Sancti Augustini (Tratado de Santo Agostinho), um moteto – composição para várias vozes – para coro a cappella de autoria do carmelita português Manuel Cardoso, com letra inspirada na obra de Santo Agostinho (354-430). Publicada originalmente em Lisboa em 1648, a obra teve seus papéis do século 17 comparados com as Solfas de Mogi das Cruzes para a constituição das partituras modernas.

Capa do Álbum “As Solfas de Mogi das Cruzes”, laçado em novembro passado. Foto: Reprodução/ProStudioMasters

Depois é a vez de três composições feitas para a Semana Santa, peças anônimas também para coro a cappella e que podem ter integrado uma única obra: Bradados para Sexta-feira da Paixão, Tratos para as Profecias de Sexta-feira da Paixão e Bradados para Domingo de Ramos. Já a sexta faixa, Regina Caeli (Rainha do Céu), é uma antífona – melodia curta, cantada antes ou depois de um salmo – a cappella anônima, música de devoção mariana e a obra mais alegre do conjunto. Uma das vozes está ausente nas solfas, o que levou o professor a reinventá-la ao lado do baixo contínuo.

A peça que encerra o álbum é a composição de maior fôlego do conjunto, Litaniae Lauretanae Beatae Mariae Virginis (Ladainha de Nossa Senhora). Outra obra de devoção mariana, para quatro vozes e instrumentos. Nas Solfas de Mogi das Cruzes foram encontradas toda a parte vocal e as indicações de um dos violinos, restando ao professor escrever as partes dos outros instrumentos.

Atribuída por Régis Duprat a Faustino do Prado Xavier, a autoria da Ladainha é colocada em questão por Rubens Russomano Ricciardi, pois sua complexidade não se encaixa na biografia do mestre de capela, que se dedicou pouco à prática musical para ter sido o inventor de uma peça desse porte. “Como alguém escreve uma obra tão interessante e depois não escreve mais nada?”, indaga o professor. Ele não descarta completamente a possibilidade de a autoria ser mesmo de Faustino, mas indica que não existem elementos suficientes para confirmá-la. “Quem escreveu a Ladainha foi um artista de muito fôlego e de muitas ideias e Faustino não tem, por sua biografia, o perfil de um compositor.”

As Gravações

As gravações de todas as músicas foram realizadas no primeiro semestre de 2024, no auditório da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, com instrumentos cedidos pela Universidade.

O coro responsável pelo registro fonográfico foi quase todo composto com cantores ligados à USP. A soprano Fernanda Ribeiro é mestranda na Escola de Comunicações e Artes (ECA), enquanto o contratenor Felipe Rissatti e o barítono Alexandre Mazzer são egressos do curso de Música da FFCLRP. A exceção é Daniel Umbelino, que Rubens Russomano Ricciardi destaca como o grande tenor da atualidade. O conjunto de cordas, por sua vez, foi formada por docentes, estudantes de graduação e de pós-graduação e egressos da FFCLRP, com a participação do cravista Carlo Vinícius Rosa Arruda.

Para o professor, a importância da edição e da gravação das solfas não é apenas histórica, mas também artística. Dentre as músicas da coleção, o professor acredita que Matais de Incêndios e a Ladainha de Nossa Senhora podem entrar no repertório de orquestras por méritos artísticos próprios.

Além disso, o docente celebra o projeto como parte da missão universitária organizada em torno do tripé ensino, pesquisa e extensão. “Como professor da USP, fico feliz, porque isso tudo está integrado com ensino e pesquisa, resultando em extensão. É matéria de sala de aula, trabalho didático e resultado para a sociedade”, comemora.

O álbum Música do Brasil Colônia – As Solfas de Mogi das Cruzes, gravado pelo Ensemble Mentemanuque, sob regência de Rubens Russomano Ricciardi, está disponível gratuitamente na plataforma digital Youtube.

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