Pouca gente conheceu o Brasil tão bem quanto o cientista e compositor Paulo Vanzolini (1924-2013). O biólogo – cuja vida e obra estão brilhantemente retratadas em exposição em cartaz em São Paulo – foi diretor do Museu de Zoologia da USP por mais de três décadas. Nesta função cumpriu papel fundamental na construção do maior acervo de répteis e anfíbios da América Latina.
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Nosso “cientista boêmio” se incluía na tradição dos viajantes científicos que mapearam e sistematizaram o território do Brasil, circulando por cantos que poucos brancos conheceram do país.
Faço esta apresentação para dizer que, quando perguntado na cena final do documentário Homem de Moral, já com mais de 80 anos de idade, sobre se tinha faltado algo em sua vida, Vanzolini respondeu que a única coisa que ele sentia era nunca ter encontrado a onça-pintada num carreiro da Amazônia.
O auge da brasilidade
Desde que ouvi aquilo, às vezes, no silêncio da noite, eu fico pensando sobre se este encontro – que no caso do compositor de Volta Por Cima não houve – seria o auge da experiência do que poderíamos chamar de “brasilidade”. Mais do que um gol de Pelé no velho Maracanã. Mais do que morrer de tocaia no sertão mineiro. Mais do que um forró de São João na Serra da Bica. Encarar a onça-pintada em seu habitat é o mais brasileiro que pode ser, ainda que a onça, com pequenas diferenças taxonômicas, esteja no imaginário de todo o continente latino-americano.
A nossa “pintada” faz parte da cosmogonia dos indígenas Kaiapós brasileiros. A onça é representada como entidade caçadora no mito da criação do fogo, transcrito pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss na série Mitológicas (1964). Está presente também na mitologia dos tupinambás, reconstituída no livro Meu destino é ser onça (2023), do escritor Alberto Mussa, que foi inspiração para o samba-enredo da escola Grande Rio, no Carnaval de 2024, no Rio de Janeiro. Por isso, como bem me lembrou o amigo Rodrigo Duarte, na véspera deste Natal, devemos tanto a João Turin (1878–1949).
Marumbi
A onça foi protagonista das principais obras de Turin, que é considerado, sem nenhum favor, o maior escultor animalista do Brasil. Em seus quase 50 anos de carreira, ele imortalizou animais selvagens ou domésticos, mas a onça foi sua favorita, sendo retratada em diversas situações: em repouso, em combate, brincando com um filhote, rugindo, entre outras…
São 27 esculturas e baixos-relevos, sendo hoje um símbolo de sua carreira artística. “É possível observar que na cultura popular a onça muitas vezes traz uma simbologia que representa a força. Isso se reflete também em várias obras de João Turin. Um bom exemplo é a premiada escultura ‘Onça esmagando a cobra’, em que este poderoso animal representa a força do povo, pisando na mediocridade”, comenta Samuel Ferrari Lago, gestor do legado artístico de João Turin.
Outro bom exemplo da simbologia de força é a obra “Marumbi”, um dos trabalhos mais famosos do escultor, que representa duas onças lutando, de forma bastante realista. A silhueta da obra forma o contorno do Pico Marumbi, que Turin avistava de sua casa durante a infância, quando morava em Paranaguá, no litoral paranaense.
Turin e as Onças
O biógrafo de João Turin, José Roberto Teixeira Leite, ressalta no livro João Turin: Vida, Obra, Arte a maestria com que o artista retratava a anatomia animal. Sua grande inspiração eram as onças do Passeio Público, primeiro zoológico de Curitiba. Como dormiam a maior parte do dia, o artista as visitava à noite, quando estavam mais alertas. Assim poderia captar seus movimentos em rápidos esboços.
Muitas vezes, Turin oferecia carne aos animais para que ficassem quietos e ele pudesse desenhá-los com tranquilidade. Mais tarde, em seu ateliê, passava os croquis para realizar suas obras em argila até lhes imprimir a silhueta, a posição e o volume desejados.
Onças nas ruas do Rio e Curitiba
Duas esculturas de onças de João Turin lhe renderam premiações no Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro: medalha de prata em 1944 por “Onça esmagando a cobra” e medalha de ouro em 1947 por “Luar do Sertão”, que representa o animal rugindo de forma imponente, como se alertasse uma floresta inteira sobre sua presença.
Ambas as esculturas estão em espaços públicos da capital fluminense e se tornaram parte da paisagem da Zona Sul, para quem visita a Praça General Osório e o Zoológico da Quinta da Boa Vista, onde estão localizadas. Muitos habitantes do Rio de Janeiro, que passam por estes locais, podem não saber quem é o autor destas obras, mas elas fazem parte do imaginário da população da cidade, há décadas.
A cidade de Curitiba, onde João Turin passou a maior parte de sua vida, tem uma vasta opção de locais públicos em que suas onças (e dezenas de outras obras com diversas temáticas) podem ser apreciadas, entre elas o Memorial Paranista, localizado no Parque São Lourenço, que conta com peças de bronze em pequeno e médio porte em uma área interna, e obras ampliadas em grandes proporções na área externa, onde está o maior jardim de esculturas público do Brasil.
Isso é onça…
Para ser um escultor animalista como Turin, não basta esculpir animais (o que foi feito aos milhares em todas as épocas e civilizações), mas sim “representar o animal como um tema em si mesmo e não mais como símbolo, atributo, alegoria ou mero enfeite, ocupando lugar secundário nas bases ou pedestais dos monumentos”, explica o pesquisador e crítico de arte José Roberto Teixeira Leite. Em seus estudos artísticos, Turin conheceu as obras do francês Antoine-Louis Barye e de outros animalistas, que serviram para confirmar ou indicar um caminho a seguir, imprimindo sua própria personalidade artística.
Este é o legado sem igual de Turin. Fazer com que cada um de nós possa mesmo sem ter ido lá, cumprir nossa meta de brasilidade e toda vez que eu encaro uma onça por eles em minhas andanças urbanas pelo Brasil, me pego cantando a moda que Vanzolini recolheu no Brasil profundo por caboclos que conheciam bem o felino:
Era um bicho pintado de cara chata
Orelha redonda, o bigode espetado
As mãos maringá e um rabo comprido
que vai como lá e eu disse:
“Isso é onça…”