Um grupo heterogêneo de pessoas confinadas em uma casa cenográfica. Expostos e vigiados pelo olhar geral durante as 24 horas do dia e (quase) sem contato com o mundo exterior por um período específico. Parece a chamada do programa Big Brother, que estreia hoje (13) sua 25ª edição, mas, na verdade, é a sinopse do espetáculo Aquariofobia – A Casa de Vidro, que foi o grande acontecimento do Festival de Curitiba de 1997.
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Dois anos antes do holandês John de Mol criar a primeira versão do programa e cinco anos antes da versão nacional estrear no Brasil, Aquariofobia antecipou o formato que o reality show consagraria nas décadas seguintes. Com a diferença fundamental de que tudo aconteceu ao vivo, na “Casa de Vidro”, erguida na praça Santos Andrade, em pleno centro de Curitiba.
As matérias de jornais sobre a peça falavam da sensação de olhar pelo buraco da fechadura. À época, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o diretor Chico Pennafiel resumiu o projeto com um tom profético: “Quem passar por aqui poderá mexer conosco ou simplesmente sentar e ficar assistindo, como se nós estivéssemos em uma enorme TV no meio da praça”, disse.
Caos e Acaso
A ideia foi proposta pelo diretor do Festival, Leandro Knopfholz, ao ator e diretor Chico Pennafiel, que, à época, estava à frente da companhia que atendia pelo muito apropriado nome de Caos & Acaso Grupo de Ordem e Desordem.
Aos 35 anos, Chico reuniu então os quatro atores que tinham o perfil e a coragem para enfrentar a empreitada: Andrei Moscheto, Camila Leitóles, Danielle Andrade e Valdair Rosa. No dia 13 de março, os papéis que ocultavam a Casa de Vidro foram retirados e o espetáculo começou.
A Casa de Vidro, na verdade, era uma caixa de acrílico de 40 metros quadrados, com um pé-direito de 3 metros de altura. Um alçapão levava para a área interna do “imóvel”, onde ficava um depósito. O banheiro com chuveiro era oculto por uma cortina.
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A alimentação era entregue por uma janelinha, por onde também entravam cartas, bilhetes e presentes. Dentro da casa, havia uma geladeira, uma TV de 29 polegadas, um computador com acesso à internet (discada) para receber e enviar e-mails, um aparelho de som com centenas de CDs, duas câmeras filmadoras, livros, um aspirador de pó e máquinas fotográficas.
Foi nesse espaço que, a partir de então, os cinco artistas conviveram por 240 horas, expostos ao olhar de toda a cidade e despertaram a atenção de toda a imprensa nacional. O plano era ficar dez dias em estado permanente de “performance”, lembra Chico, inclusive dormindo.
Momentos de interação com o público, mas também momentos em que a interação era interna, para que o público exercitasse seu voyeurismo. Dentro do aquário, mais de 400 possibilidades de figurinos, além de adereços e maquiagem.
“É como um peixinho dourado que achamos lindo, mas que está preso. Vamos expressar como é o lado de lá”, disse Andrei Moscheto em entrevista à Folha de S. Paulo. O comediante, atualmente na companhia Antropofocus, tinha apenas 20 anos durante Aquariofobia.
Coreografia com a cidade
Quinze anos mais experiente, o diretor Pennafiel lembra que já existiam haters em 1997. Nas primeiras noites, um grupo se dedicou a tentar não deixar a trupe dormir. Mas ele conta que as pessoas, em geral, abraçaram a ideia de Aquariofobia e que as pessoas entravam no jogo “numa coreografia que envolvia toda a cidade”.
“A gente mexeu com a cidade inteira. As pessoas marcavam de passar na casa antes ou depois de ir para a balada e, às vezes, marcavam a festa ali mesmo”, lembra.
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Além dessa fan base que se formou rapidamente, o público era o que circulava na praça: malucos, notívagos, desocupados, apresentadores, moradores de rua, pessoas em trânsito, estudantes e, claro, o “pessoal do teatro”.
Uma Valsinha ao amanhecer
Entre muitos momentos memoráveis, Pennafiel destaca um ocorrido nas primeiras horas de uma madrugada, quando colocou para tocar a canção Valsinha, de Chico Buarque. Um sujeito com roupa social e a então indefectível pasta 007 parou em sua frente e ambos dançaram silenciosamente antes do homem partir para mais um dia de trabalho.
Com o passar dos dias, o grupo confinado na casa tornou-se uma espécie de “corpo místico” da cidade. Com cartazes, bilhetes, mímicas, gestos e fotos trocadas de dentro para fora da casa e vice-versa, as pessoas os procuravam para pedir ajuda ou conselhos sobre a vida, sem falar da linha telefônica – número 041-224-5330 – que não parava de tocar e, por isso, foi retirada do gancho já nos primeiros dias da performance/experiência.
Doce Maluquice
Chico Pennafiel avalia que o projeto Aquariofobia foi um grande êxito em muitas frentes: “Como experiência artística, foi transformador para todos nós que nos envolvemos”, disse. Houve repercussão de mídia em todo o país e abriu espaço para muitas pesquisas acadêmicas na antropologia e nas artes dramáticas. O sucesso estrondoso indicava que a vida (quase) real de Aquariofobia era o que as pessoas queriam ver.
A Casa de Vidro foi desmontada às 18h do dia 23, após um total de 240 horas e três mil bilhetes recebidos. “Foi uma doce maluquice, a maior da minha carreira, um grande aprendizado, mas algo que exigiu muita coragem e juventude”, brinca o diretor, que mal sabia que ele e os colegas abriam caminho para o programa de maior sucesso dos últimos 30 anos na televisão brasileira.