“Por meio de Cantel, os próprios pesquisadores no Brasil começaram a desenvolver um olhar diferente em relação à literatura de cordel.”
É assim que Sylvia Nemer, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, do Rio de Janeiro, define a relevância do professor francês e pesquisador da cultura brasileira Raymond Cantel (1914-1986), que reuniu uma das maiores coleções de folhetos de literatura de cordel do mundo, com cerca de 5 mil documentos – boa parte deles coletada no Nordeste brasileiro.
+ Leia Também + Uma Pedreira para Ivo Rodrigues
Conservada na Universidade de Poitiers, na França, onde Cantel lecionou, essa coleção foi tema do seminário Acervo Raymond Cantel em Evolução – Conservação, Comunicabilidade e Pesquisas Recentes França-Brasil, que aconteceu nesta semana que passou, com participação de pesquisadores do Brasil e da França. Promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e pela Maison des Sciences de l’Homme et de la Société da Universidade de Poitiers. O evento final pode ser visto no canal do IEB na plataforma YouTube.
Nessa mesa-redonda, o tema A Importância de Cantel e de seu Acervo foi debatido por quatro pesquisadores brasileiros, entre eles o professor Paulo Teixeira Iumatti, do IEB. Além dele e de Sylvia Nemer, participarão da live a professora Rosilene Alves de Melo, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, e o professor Marco Haurélio, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Houve ainda uma conferência da professora Francisca Pereira dos Santos, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), no Ceará e foi aberta na França a exposição Dila de Caruaru à Poitiers, sobre a obra do poeta e xilogravurista Mestre Dila (1937-2019), de Caruaru (PE), feita com base em documentos do Acervo Raymond Cantel.
“O acervo de Cantel reflete, principalmente, a rede de relações de cordelistas e cantadores nordestinos dos anos 50 aos anos 70”, afirma o professor Paulo Iumatti. “Seu acervo não diz respeito apenas aos folhetos de cordel em si ou às gravações de cantoria que realizou, mas também ao seu arquivo de cartas e outros documentos que revelam todo um universo intelectual envolvendo poetas, cantadores, xilogravuristas, colecionadores e folcloristas”, acrescenta o professor.
Para ele, Cantel ajudou a dar sustentação às relações Brasil-França e aos estudos sobre o Brasil na França. “Isso não é pouca coisa, se consideramos que a cantoria e o cordel são produções culturais historicamente muito desvalorizadas no Brasil.”
Em sua participação no seminário, Iumatti apresentou os dados iniciais de uma pesquisa sobre o cantor e compositor pernambucano Siba Veloso. “Ele é um artista brasileiro da cena independente muito importante e prestigiado, cujo estilo pessoal está totalmente imerso na poética da literatura de cordel e, sobretudo, da cantoria – não no sentido de ‘beber na fonte’, mas de se apropriar e incorporar determinados processos criativos, de forma estrutural”, destaca Iumatti. “A trajetória de Siba mostra que o que se denomina ‘tradição’ é, na verdade, um conjunto de processos criativos que está em constante transformação e reinvenção.”
![](https://fringe.com.br/wp-content/uploads/2025/02/20250211_grande-sertao_veredas.jpg)
Professor visitou o Brasil pela primeira vez em 1959
Raymond Cantel viajou pela primeira vez ao Brasil em 1959, com o objetivo inicial de estudar temas ligados ao messianismo, mas logo se encantou pela literatura de cordel e passou a pesquisá-la. “Desde a primeira visita até a sua morte, em 1986, ele passou a visitar o Brasil sistematicamente, fazendo palestras sobre a literatura de cordel”, afirma a pesquisadora Sylvia Nemer.
Sylvia conta que, em seu período no Brasil, Cantel tinha como instituição-base justamente a Fundação Casa de Rui Barbosa, porque esta fazia a mediação com outras instituições para a realização de congressos e palestras. “Na fundação, ele teve contato com vários pesquisadores de cordel, como Sebastião Nunes Batista, e abriu um leque de opções diferenciadas em relação à pesquisa e ao próprio fazer do cordel”, destaca a pesquisadora. Como exemplo, ela cita uma fala do cordelista Raimundo Santa Helena, extraída de documentos da Casa de Rui Barbosa, em que ele afirma: “Passei a fazer os versos desse jeito que eu faço hoje por influência do Cantel”.
“Ou seja, ele teve um papel muito grande na influência sobre os pesquisadores e, também, sobre um ou outro cordelista, porque ele circulava muito, não só nos meios acadêmicos e de memória, como também nas feiras, nos mercados, nos locais de produção e de venda de cordéis”, acrescenta Sylvia.
![](https://fringe.com.br/wp-content/uploads/2025/02/20250211_cordel_cantel_Idade-Media.jpg)
Acervo inclui fotografias e gravações
O Acervo Raymond Cantel, hoje sob os cuidados da Universidade de Poitiers, teve uma grande evolução desde 2018, quando o cordel passou a ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (Iphan) — ao lado da xilogravura e da declamação performática, bens correlatos. Ele é, atualmente, o maior acervo desse tipo de literatura na Europa e um dos maiores do mundo. Dos seus cerca de 5 mil documentos, a maioria foi publicada em português, mas há também obras em espanhol, catalão, italiano, francês e alemão. “É um acervo muito rico. São fotografias, gravações, cantorias, entrevistas com poetas, imagens de palestras, além dos folhetos impressos, datilografados e manuscritos”, resume Sylvia.
A pesquisadora enfatiza a importância do trânsito cultural e acadêmico entre Brasil e França. “Houve uma troca muito grande de saberes entre Raymond Cantel e pesquisadores do Rio de Janeiro e os próprios produtores de cordel e de xilogravura”, enfatiza Sylvia. “Ele não só levou para a França um acervo muito grande de material, mas também deu cursos e teve várias turmas de mestrado sobre literatura de cordel. Muitos pesquisadores franceses vieram para o Brasil e até ficaram aqui.” O poeta cearense Patativa do Assaré (1909-2022) foi um dos cordelistas brasileiros introduzidos na França por Cantel.
![](https://fringe.com.br/wp-content/uploads/2025/02/20250211_Raymond-Cantel.jpg)
Para Sylvia, é importante que o público geral, não especializado, tenha acesso e interesse por consumir a literatura de cordel por meio de eventos que façam essa divulgação, como acontece na França. “Os pesquisadores franceses também fazem exposições. E isso é muito positivo, porque estamos exportando o nosso imaginário, a nossa arte, a nossa cultura para além das fronteiras onde essa arte é produzida.”
Por Ricardo Thomé do Jornal da USP