Beatriz (Camila Costa Melo) é uma jovem de classe média-baixa que aguarda ansiosamente por uma bolsa de estudos para fazer pós-graduação nos Estados Unidos. Ela vê o sonho em risco quando sua mãe, Antônia (Cristina Bordin), oferece abrigo ao seu primo Bento (Gabriel Santana), militante da luta armada contra a ditadura civil-militar então no poder. Diante disso, a jovem aciona dois policiais, Tobias (Ruben Pignatari) e Neto (Flávio Passos), a fim de garantir que as atividades de Bento não estraguem seus planos. É a partir dessa situação que se desenvolve a trama de O Sonho Americano, peça da Cia. Teatro dos Ventos, com direção de Luiz Carlos Checchia, que está em cartaz até 30 de março no Teatro Studio Heleny Guariba, em São Paulo.
+ Leia Também + Teatro Musical no Festival de Curitiba: Ray Chales e underground amazônico
O espetáculo é um desdobramento da tese de doutorado de Checchia, defendida em 2023 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Com o título O Discurso do Capitão, o Bolsonarismo e sua Guerra Cultural, a tese teve o objetivo de “estudar as expressões da extrema-direita e do fascismo no Brasil, chegando à figura do ex-presidente Jair Bolsonaro”, conta Checchia ao Jornal da USP. Para ele, a ascensão do chamado “centrão” como protagonista no Congresso Nacional e a condução mais eficaz das subjetividades do discurso pela direita brasileira foram as principais responsáveis pelo avanço da extrema-direita no País.
Da tese para os palcos

O Sonho Americano realça a força dos discursos preconceituosos e pró-ditadura da época do regime militar no Brasil (1964-1985), mesmo que por meio de atitudes contraditórias das personagens. Como destaca Luiz Carlos Checchia, esses discursos são representados, principalmente, pelos dois policiais do Dops (Departamento de Ordem e Política Social) que compõem a narrativa e interagem com Beatriz e Antônia. “O Tobias é um policial antigo, veterano. Já o outro policial, o Neto, é um rapaz novo, gago, formado em Psicologia e que fez curso no FBI, nos Estados Unidos.”
Na trama, Neto se considera um “liberal”, enquanto chama Tobias de “conservador’. Apesar do contraste, ambos admitem que o País vive uma ditadura e que os comunistas devem compor a última camada da sociedade — ainda que concordem com eles em alguns pontos. Para os policiais, “os militares sabem o que estão fazendo”.
Checchia enfatiza que a força do título da peça vai muito além do american dream vivido pela protagonista, estendendo-se para o modo de pensar da sociedade brasileira da época, fortemente influenciada pelos Estados Unidos. “É uma subjetividade inoculada, que vem de fora, da formação subjetiva dessa sociedade imperializada que é a que a gente vive”, diz o diretor. Como exemplo, ele cita novamente Tobias e Neto, que, em dado momento da peça, fantasiam sobre suas vidas como xerife do velho oeste e super-herói, respectivamente — ambos ideais absorvidos da cultura estadunidense. “Tobias fala que certa vez pediu transferência para o Acre. Quando perguntado sobre o porquê, ele responde: ‘Atirar em índios, o que mais tem para fazer lá?’”, conta Checchia.
O diretor explica que, ao estudar a extrema-direita brasileira para sua tese, percebeu uma identificação com a mentalidade da extrema-direita estadunidense. “A partir dessa questão da guerra cultural, da subjetividade da formação da extrema-direita brasileira, queríamos entender como os contextos da luta de classes reposicionam as pessoas de um determinado segmento — no caso, da pequena burguesia brasileira — para um posicionamento político mais reacionário”, diz.
O diretor acrescenta que a subjetividade é, hoje, um dos principais campos da disputa política no Brasil. “E esse campo é muito mal percebido pela esquerda brasileira. A direita, hoje, entendeu muito melhor o papel da subjetividade do que a esquerda. Acho que isso explica muito o avanço da extrema-direita no Brasil.” No que se refere à ascensão de pensamentos fascistas, Checchia identifica que “eles surgem justamente no seio de uma pequena burguesia que não costuma se expressar politicamente, numa sociedade em que a esquerda não consegue promover os avanços que deveria”.
Indagado sobre a possibilidade de comparar o momento vivido pelo Brasil hoje àquele da ditadura civil-militar, ele é direto: “O processo histórico é igual. O golpe de 1964, de alguma forma, foi promovido por determinados setores da extrema-direita brasileira que interromperam um amplo debate político e um momento de polarização que estava sendo feito no Brasil naquele momento. O golpe interditou esse debate, pôs no comando uma extrema-direita muito mais ligada aos setores militares”.
Realismo mágico e inspirações
Para elaborar O Sonho Americano, Luiz Carlos Checchia utilizou várias referências, que vão da literatura ao cinema. Conceitualmente, ele teve como base ideias do sociólogo grego Nicos Poulantzas (1936-1979) e da jornalista alemã Clara Zetkin (1857-1933), a fim de analisar a ascensão do fascismo nas sociedades. Narrativamente, olhou para autores realistas dos Estados Unidos. Mas a principal inspiração é, talvez, do escritor argentino Júlio Cortázar (1914-1984), que tem diferentes fases na sua escrita, mas foca na política. “Eu tentei entender como é a escrita política do Cortázar e como ele faz essas reviravoltas. E a peça tem isso: posso dizer que dois terços da peça são realistas, mas, ao chegar ao último terço, ela dá uma virada muito forte para o campo do realismo fantástico. E é aí que vai mostrar o absurdo da ditadura.”
Cecchia acrescenta que a intenção é mostrar não só a violência física, mas a violência da subjetividade, representada pela ideia de realismo mágico. Na peça, a subjetividade se observa também nas reações de Beatriz ao longo da trama. Antes determinada a denunciar seu primo aos policiais, ela passa por um processo de desencanto conforme acontecem as ações dos oficiais do Dops, e se mostra cada vez mais assustada, mesmo nos momentos em que diz concordar com o que eles propõem.
As representações simbólicas estão presentes ainda no jogo de luzes do espetáculo, desenhado pelo ator Iohann Iori Thiago, e pelo uso das cores dos figurinos. Os cenários são brancos, para passar a ideia de uma casa sem memória, em referência à morte do pai de Beatriz, assunto mal-resolvido dentro da família, e aludindo também a um País sem memória. Além disso, as luzes ficam mais ou menos intensas conforme a tensão das cenas. Quanto às cores dos figurinos, também há um propósito por trás. “Há muito verde e vermelho nos figurinos. Um verde mais puxado para o musgo, com uma ideia mais asquerosa, que é muito utilizada no cinema, para falar sobre momentos de desespero. E o vermelho representa uma questão mais trágica, mais violenta”, explica o diretor.
A peça O Sonho Americano, da Cia. Teatro dos Ventos, com direção de Luiz Carlos Checchia, está em cartaz até 30 de março, aos sábados, às 20 horas, e domingos, às 19 horas, no Teatro Studio Heleny Guariba (Praça Franklin Roosevelt, 184, Centro, em São Paulo, próximo à estação República do metrô). Não haverá sessões nos dias 1º e 2 de março. Ingressos podem ser adquiridos pela plataforma Sympla. Assista ao teaser da peça neste link.