Há quase 20 anos, o Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator (Cepeca) desenvolve trabalhos de pesquisa e inovação na área das artes cênicas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Fundado em 2007 pelo professor Armando Sérgio da Silva (1945-2023) e focado na pós-graduação, ele se tornou objeto de estudo do pós-doutorado da pesquisadora, atriz e dançarina Evinha Sampaio.
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No seu trabalho – aprovado em fevereiro passado, na ECA, com o título Cepeca: Um Coletivo de Individualidades (2007-2017) e a supervisão da professora Maria Silvia Betti -, Evinha aborda os primeiros dez anos do Cepeca e analisa dez teses de doutorado e 23 dissertações de mestrado escritas ao longo desse período por integrantes do centro, com destaque para o conceito de “intérprete criador”, relacionando-o com as ideias de indústria cultural e de neoliberalismo na atualidade.
]O relatório final de Evinha inclui um arquivo iconográfico digital com 93 fotos de espetáculos produzidos a partir daquelas teses e dissertações. A intenção da pesquisadora é transformar o relatório em livro, a ser distribuído para estudiosos e interessados nos estudos das artes cênicas.
Teoria unida à prática
Segundo Evinha – que atuou como secretária executiva do Cepeca entre 2010 e 2015 -, “intérprete criador” é aquele profissional que une a teoria à prática em suas atividades, o que, de acordo com a pesquisadora, é crucial para quem trabalha com arte. Esse conceito está presente nas peças produzidas pelo Cepeca e analisadas por Evinha no seu pós-doutorado.
As peças, sem a presença de um diretor, eram “um laboratório permanente”, diz Evinha. “Eram os participantes do grupo que assumiam todas as funções: cenografia, figurinista, direção, sonoplastia etc. Quem é do teatro tem essa necessidade de criar. Se eu sou intérprete criadora, tenho que tratar de tudo.”

Outra ideia desenvolvida pelo Cepeca é o conceito de “anteparo”, criado pelo professor Armando Sérgio da Silva, que está relacionado com “aquilo que serviu de estímulo para a criação”. Evinha cita como exemplo a dissertação de mestrado de Renata Mazzei Batista, apresentada no Cepeca em 2009, intitulada O Aikido e o Corpo do Ator Contemporâneo. Nesse caso, o aikido – um arte marcial japonesa – é o anteparo. “A Renata usa o gesto, o pensamento do aikido, que é uma cultura, uma filosofia, para fazer a criação cênica dela. E isso se estende à estética. Por isso até o figurino traz elementos do aikido e da cultura japonesa.”
Evinha cita ainda outro conceito praticado no Cepeca, o “corpooutro”, que ela desenvolveu em sua tese de doutorado, defendida no Cepeca em 2014. Esse conceito se refere ao corpo das pessoas em situação de rua que sofrem com transtornos mentais. “Eu utilizei essa ideia para fundamentar esse corpo dentro do teatro documentário”, explica Evinha. “Eu peguei dois delírios reais de pessoas com problemas mentais e os transportei à minha maneira, como intérprete criadora, para o teatro documentário.”
Indústria cultural e neoliberalismo
Evinha baseou sua pesquisa em dois conceitos: a indústria cultural e o neoliberalismo. O primeiro, desenvolvido pelos filósofos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), está voltado, na explicação de Evinha, para a crítica da produção artística que visa prioritariamente ao lucro e ao comércio, “sem dar atenção ao fazer artístico, à criação, à subjetividade do artista, algo muito comercial”.
Ela cita como exemplo o cinema hollywoodiano e a música sertaneja da atualidade, que têm uma “fórmula do sucesso”. “O público que consome isso, em geral, não tem pensamento crítico, não nota essa ciranda. Ele se acostuma com aquilo, sem desenvolver autonomia de pensamento.”
Já o neoliberalismo é explicado por Evinha a partir da ótica dos filósofos e sociólogos franceses Pierre Dardot e Christian Laval, presente no livro A Nova Razão do Mundo. “Estamos vivendo o momento de uma sociedade individualista, narcisista, que finge ser feliz nas redes sociais. E a vida não é isso. O livro de Dardot e Laval traz esses problemas, num grande ensaio sobre a sociedade neoliberal.”
As atrizes Renata Vendramin e Maritza Farías Cerpa nos espetáculos A Próxima História e A Individualidade Criativa do Ator no Trágico Cotidiano, produzidos no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator (Cepeca) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP — Marcelo Tomasini e Arquivo pessoal, respectivamente
Arquivo digital e livro
Com 260 páginas, o relatório final do pós-doutorado de Evinha deve ficar disponível on-line em breve. Além da versão digital, ela pretende fazer a impressão em forma de livro de uma versão reduzida do trabalho. “Se não conseguirmos patrocínio para fazer o livro, a ideia é fazer uma vaquinha eletrônica e imprimir mil unidades, para serem distribuídas em universidades, faculdades, escolas de teatro, ONGs e lugares que tenham interesse na pesquisa e na arte, no teatro e na dança”, planeja Evinha. Nesse projeto, Evinha se coloca mais como organizadora do que como autora: “Todo mundo do Cepeca se envolveu”.
Já o arquivo iconográfico digital montado por Evinha também pode vir a ser disponibilizado on-line no futuro. As 93 fotos de espetáculos produzidos no Cepeca entre 2007 e 2017 mostram as iniciativas inovadoras surgidas ao longo das atividades do centro. O arquivo inclui anexos com os conceitos cunhados pelos autores das teses e dissertações analisadas pela pesquisadora, a fim de “marcar a criação e a subjetividade como valores do Cepeca”, como ela diz.

A pesquisadora considera que tanto a sua pesquisa – que levou dois anos e meio para ser concluída – como as atividades do Cepeca podem ser definidas como “trabalhos de resistência”. “Nós estamos tentando, com a nossa arte, ser um obstáculo a essa indústria cultural, a esse egoísmo, a essa sociedade individualista. Porque o teatro é um trabalho coletivo. E, trabalhando com arte, você está trabalhando com sensibilidade, com subjetividade.”
O Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator segue funcionando no Departamento de Artes Cênicas da ECA, com participação gratuita e aberta a professores e alunos de pós-graduação. Atualmente, a direção e a coordenação são do professor Eduardo Coutinho.