Corria o ano de 1974 e um encontro entre um agente penitenciário e um advogado mudou a história da música brasileira. O compositor Délcio Carvalho apresentou o advogado Nei Lopes como “o melhor letrista de samba do Brasil” ao agente da lei Wilson Moreira. Sobre o segundo, Délcio garantiu que o sambista “colocava melodia até em bula de remédio”.

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Parceiro frequente de Dona Ivone Lara, Délcio apadrinhou uma das mais influentes parcerias da música popular brasileira. O sucesso começou naquele mesmo ano, quando a dupla teve suas primeiras músicas gravadas: “Leonel, Leonor”, por Roberto Ribeiro, e “Te Segura”, na voz de Beth Carvalho. Mas o primeiro grande estouro foi “Gostoso Veneno”, imortalizado por Alcione.

Nei Lopes toca pandeiro com Nélson Cavaquinho, Jair do cavaquinho e uma roda de outros bambas. Foto: Arquivo IMS

Nei Lopes costuma contar que o sucesso desse samba na voz da “Marrom” mudou o comportamento de sua família em relação aos cochilos vespertinos. O “acorda, vagabundo” virou “deixa o poeta dormir” quando os primeiros cheques de direito autoral de “Gostoso Veneno” começaram a chegar. Nei abandonou a advocacia e passou a se dedicar integralmente à composição.

Wilson Moreira, então agente penitenciário no Complexo de Bangu, se aposentou apenas no início dos anos 1990. Nem ele nem Nei sabiam quantos sambas fizeram juntos. Wilson estimava mais de cem registradas em papéis, fitas K7 e demos. Gravadas, eram perto de 60, por diversos cantores e pela dupla, em discos de estúdio e ao vivo. A parceria foi interrompida em 1997, quando Wilson sofreu um AVC.

O melhor disco da década de 1980

O material que a dupla criou e refinou na segunda metade dos anos 1970 culminou no álbum lançado em 2 de janeiro de 1980. Para mim, o melhor disco brasileiro da década, pois resume a anterior e antecipa a seguinte.

Com 14 faixas, produção de Renato Corrêa e Genaro Soalheiro e arranjos de Rogério Rossini, o disco começa com um partido-alto já gravado por Nadinho da Ilha e regravado por Zeca Pagodinho vinte anos depois. O refrão incorpora o clássico “Goiabada Cascão”, expressão do jornalista Sergio Cabral (o pai) para definir o violonista Dino Sete Cordas. Dino, aliás, brilha nos bordões do violão.

O álbum conta com Carlinhos do Cavaquinho, Alceu Maia e Mestre Marçal, além do coro de As Gatas (Dinorah Lemos, Zenilda Barbosa e Eurídice). “Coisa da Antiga” encerra a primeira parte. Em seguida, vêm “Coité, Cuia”, um samba-calango rural, e “Gotas de Veneno”, gravado por Jair Rodrigues em 1978. Esta é uma das três músicas de Wilson Moreira com “veneno” no nome, ao lado de “Não Tem Veneno” (com Candeia) e “Gostoso Veneno”.

Hinos e Enredos

O próximo petardo é “Senhora Liberdade”. Nei Lopes conta que, no fim dos anos 1970, perguntou a Wilson sobre a existência do “samba de cadeia”. Ao ouvir a confirmação, criou a letra e encomendou a melodia. A segunda parte virou a primeira e, lançado em 1979, o samba foi tomado como hino da Anistia.

Depois vêm “Noventa Anos de Abolição”, samba-enredo vencedor no Quilombo (escola fundada por Candeia) para o carnaval de 1979, e “Silêncio de Bamba”, que homenageia um mestre-sala assassinado às vésperas do carnaval de 1978. A faixa ganhou uma segunda parte em tributo a Candeia, falecido meses depois.

A parceria mais elegante do samba brasileiro. Foto: Arquivo IMS

O doce e nostálgico “Samba do Irajá” antecede “Gostoso Veneno”, o maior sucesso da parceria, com mais de dez gravações, incluindo uma pela orquestra do francês Paul Mauriat. O fecho vem com “Ao Povo em Forma de Arte”, samba-enredo do Quilombo em 1978, gravado por Candeia, um dos melhores do gênero.

30 anos depois do lançamento, o álbum foi relançado em edição de luxo, pelo Instituto Moreia Salles, com direito a encarte especial de onde saíram muitas das informações deste texto. Por tudo isso, este conjunto sofisticado, poético e político de sambas, interpretado com elegância por seus próprios criadores, é um dos melhores discos de samba de seu tempo. Bom para ouvir agora e sempre.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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