Por Sandoval Matheus
Natural de Irará, na Bahia, Denise Di Santos fez duas coisas muito importantes da vida. A primeira, aos sete anos de idade, foi acudir a tia grávida que, expulsa de casa, queria se afogar numa cisterna. No salvamento, contou com a ajuda de Tom Zé – sim, ele mesmo –, que estava de namorico adolescente numa sombra ali por perto e correu pra ajudar quando ouviu o alvoroço das crianças.
+ Leia Também + Cine Passeio, teatro com maior taxa de ocupação do país faz 6 anos
“A partir dali, ele passou a ser meu padrinho”, contou Denise, em entrevista coletiva na manhã desta quarta-feira, 26, na Sala de Imprensa Ney Latorraca, no Hotel Mabu. “Pouco tempo atrás, pedi autorização pra montar essa peça da cisterna, mas preciso enviar o texto pra ele. Não tive coragem ainda.”
O segundo ato, menos dramático e muito mais encantador, aconteceu nos anos 80, quando Denise, já morando em Salvador, inventou com a parceira com Ismine Lima o teatro lambe-lambe, um tipo de encenação que apresenta espetáculos curtos em caixas pequenas, utilizando bonecos, objetos ou sombras. O nome é inspirado nos antigos fotógrafos ambulantes, que exerciam seu ofício em ruas, praças e feiras, carregando desengonçados tripés com câmeras artesanais.
No Festival de Curitiba, o teatro lambe-lambe compõe a Mostra AnimaRua, em sua sétima edição, com artistas de sete estados brasileiros e três países da América do Sul. Na programação, está a primeira montagem de Denise Di Santos, “A Dança do Parto”. Ela também dará a masterclass “Um Troco Trocado: o teatro lambe-lambe como reparação histórica das mulheres”.
Confira a programação completa do AnimaRua no Guia 2025, a partir da página 80.
“A gente estava saindo da ditadura, e queria desmistificar a ideia de que as crianças vinham com as cegonhas. Era uma mentira, e incomodava muito”, comentou Denise, a respeito da concepção de “A Dança do Parto”. “Num equipamento minúsculo, colocamos um pouco de verdade pra ser absorvida. O lambe-lambe é também um espaço político, social, não só de entretenimento.”
Faz pouco tempo, porém, que um pai tirou a filha de 11 anos da fila quando soube do que se tratava a animação. Para compensar, na mesma ocasião uma mulher que havia abortado três meses antes foi às lágrimas. “Ela me disse que agora se achava preparada para ter um próximo filho”, lembrou Denise. “A peça é o que acontece na vida, o nosso corpo. A gente está vendo morte o tempo todo e não pode falar de vida?”
Coordenadora e produtora do AnimaRua, Inecê Gomes gosta de chamar Denise Di Santos de “mainha”. “Não é que ela fez uma coisa pela primeira vez no Brasil. Ela inventou uma manifestação cênica, dentro de uma caixa, que não existia antes, em nenhum lugar.”
A Mostra AnimaRua começou em 2017, com 11 participantes. Oito deles, absolutamente inexperientes, eram novatos no ramo. E uma estrangeira só se apresentou por ter dado a sorte de estar passando por Curitiba justamente no período. “Foi um bafo. As filas eram enormes”, garante Inecê.
O espírito se mantém até hoje. “A nossa curadoria é do tipo ‘vem quem quer’. São todos artistas que vivem da rua, de festival em festival. Se estiver passando por Curitiba, a gente abraça”, continuou a coordenadora.
O valor do ingresso segue a filosofia do “pague quanto vale”. Mas como hoje em dia ninguém mais carrega no bolso uns cobres pra jogar no chapéu do artista, na certa um QR code estará sempre à mão para o pix providencial.