Por Sandoval Matheus, do Festival de Curitiba
Quando a diretora Inês Buchatsky informou DaCota Monteiro de que iria montar “Rei Lear”, o mais trágico dos textos de William Shakespeare, com um elenco formado apenas por drag queens, a primeira reação do ator foi de descrédito. “É claro, boa sorte pra você, dirigindo drag queens”, pensou, ironicamente.
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Oito meses após a estreia, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo, o espetáculo é sucesso de público e crítica. Em cartaz no Festival de Curitiba, foi um dos primeiros a ter seus ingressos totalmente esgotados, e viu seu protagonista, o ator Alexia Twister, vencer o Prêmio Shell, a mais importante honraria do teatro nacional.

“Pra mim, foi um processo difícil. É um personagem que tem quatrocentos anos e que já foi interpretado pelos maiores nomes do teatro nacional”, contou Alexia, durante entrevista coletiva na Sala de Imprensa Ney Latorraca, no Hotel Mabu. “Mas o que ele te dá de desgaste emocional, te devolve em glória.”
“Eu sou ator há mais de trinta anos, e muitas vezes enfrentei dificuldades pra encontrar trabalho, por ser afeminado. Não passava nos testes”, continuou. “O prêmio tem uma importância não só pra mim, mas pra toda uma comunidade. Eu penso na minha ancestralidade drag, que sofreu, apanhou, lutou. E para quem está por vir. A gente mostrou que é possível.”
Historicamente, a ideia de montar “Rei Lear” com drag queens nem é assim tão despropositada. Há quem dia que o termo “drag” foi cunhado por Shakespeare, uma sigla pra “dressed resembling a girl”, rubrica usada pelo dramaturgo inglês pra indicar que determinado papel deveria ser feito por um homem travestido. À época, não era permitido às mulheres atuar.
“Eu amo drags e gosto muito de qualquer coisa com drags. Eu fiz a peça que eu gostaria de ver. As drags têm uma potência que a gente precisa trazer pra roda”, disse Inês Buchatsky. “Ser drag não é só colocar uma peruca. Tem que entender de atuação, de canto, de dança, de maquiagem, de costura, de iluminação. São muitas artes envolvidas”, completou DaCota. “Até por isso, não estamos acostumados a ser dirigidos. Sempre fazemos tudo sozinhos.”

Ao contrário do que pode parecer aos desavisados, o espetáculo é consciencioso na adaptação do texto original. “As pessoas chegam no teatro pensando que vamos subverter Shakespeare, rasgar o texto. Muita gente, quando pensa em drags, pensa imediatamente em patacoada. Mas a gente queria fazer uma tragédia, mesmo. A mais longa e mais difícil obra de Shakespeare”, explicou João Mostazo, responsável pela nova versão. No trabalho, ele fez um esforço de síntese, diminuindo o número de personagens, cortando algumas cenas e diminuindo a duração da peça, além de substituir alguns vocábulos, tudo pra deixar a montagem mais palatável ao público contemporâneo.
“A gente também queria fazer uma peça popular, que todo mundo entende”, argumentou Inês Bushatsky. “É como eu acho que devemos tratar os clássicos, como se fossem contemporâneos. Se não eles ficam congelados no tempo”, continuou João.
O desejo, agora, é aplicar a mesma receita a outros totens shakespeariano. Os projeto, no entanto, ainda precisa ser viabilizado financeiramente. “Estamos conversando. Fizemos um case de sucesso. Foi um elenco que deu muito certo. Pra continuar, precisamos de dinheiro”, admitiu a diretora. Por ora, melhor se concentrar em colher os louros pelo trabalho já feito. “Estamos no Festival de Curitiba e isso é muito foda.”