Por José Adryan Galindo, do Jornal da USP

As bibliotecas comunitárias criadas pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) no distrito de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, têm ganhado notoriedade em âmbito nacional. O projeto já foi tema de pesquisa da USP e recebeu em 2024 o Prêmio Jabuti de fomento à leitura. Apesar dos reconhecimentos, o projeto também teve seus obstáculos. A primeira biblioteca inaugurada ficou durante dez anos instalada no Cemitério de Colônia Paulista, até ser despejada de lá durante a pandemia.

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O Ibeac chegou a Parelheiros em 2008 para desenvolver ações voltadas à promoção dos direitos humanos. O projeto surgiu pois, naquele ano, uma pesquisa havia apontado a região como a pior de São Paulo para se morar, levando em consideração índices de desenvolvimento, educação, criminalidade, entre outros.

“Nós não chegamos lá para criar uma biblioteca. A gente chegou para encontrar a comunidade e, junto com ela, olhar o que o índice não pegou. O índice olhava tudo aquilo que era ruim e a gente queria saber o que tem de bom”, lembra Isabel Santos Mayer, conhecida como Bel, coordenadora do Ibeac e idealizadora do projeto.

Foi a partir do trabalho com um grupo de jovens e da Declaração Universal dos Direitos Humanos que surgiu a ideia da biblioteca. “A gente começou a estudar e reescrever a declaração, 30 artigos, tão pequenininho, mas um documento tão importante para o mundo. E aí a gente pensou: vamos escolher um dos artigos. A gente escolheu o direito humano à cultura. E daí veio a ideia de biblioteca”, conta Bel.

Imagens da Biblioteca Azul das Ondas em Parelheiros – Foto: Marcos Satos USP/Imagens

O projeto começou pequeno, com ações de leitura em salas de espera de unidades de saúde. Chamadas de “pílulas de leitura”, essas ações logo começaram a receber doações de livros e ganharam corpo. Quando foi necessário liberar espaço na unidade de saúde para a instalação de um consultório odontológico, a comunidade encontrou um novo local para a biblioteca: a antiga Casa do Coveiro, no Cemitério de Colônia. “Imagina levar jovens pretos, que são alvo de execução sumária no nosso País, para dentro de um cemitério para falar de literatura”, reflete Bel.

Mobilização Comunitária

Durante a pandemia, o cemitério, por ser privado, decidiu ampliar as sepulturas e pediu a desocupação do espaço onde funcionava a biblioteca. A equipe, então, costurou 500 sacolas e distribuiu os livros entre famílias da comunidade, numa campanha chamada “Eu guardo, eu aguardo a biblioteca”. No mesmo período, outras bibliotecas começaram a ser criadas em bairros da região. O princípio era simples: todo mundo precisava chegar a pé até uma biblioteca.

Além de promover o acesso à leitura, as bibliotecas comunitárias também funcionam como ponto de articulação de políticas públicas e de memória do território. Foi nesse ambiente que Sidinéia Chagas se formou como liderança. Moradora da Barragem, bairro em Parelheiros, ela entrou em contato com o Ibeac quando tinha 17 anos. Foi uma das adolescentes da região que ajudaram a fundar a primeira biblioteca do projeto.

Sidinéia conta que estava grávida durante esse processo e que foi no projeto que encontrou uma rede de apoio que a permitiu terminar os estudos e não ter outros filhos ainda jovem. Hoje com 33 anos, ela comemora juntamente o aniversário do seu filho e a chegada da iniciativa em Parelheiros.

A rede de apoio que Sidinéia encontrou estava no Centro de Excelência em Primeira Infância, que na época era chamado de Sementes da Leitura, onde se faziam rodas de leitura com as adolescentes gestantes do território. Atualmente, o projeto trabalha com plano de parto, amamentação, vínculo afetivo, incentivo à leitura literária e e-book fotográfico.

Hoje, o projeto das bibliotecas comunitárias conta com cinco unidades espalhadas pelo território. Uma sexta unidade está em fase de construção em um terreno em área de Mata Atlântica. O local será ocupado com permissão da comunidade e da cooperativa Cooperapas, com quem o Ibeac mantém parceria. A ideia é que o espaço abrigue uma biblioteca ao ar livre e uma campanha de reflorestamento com 10.639 árvores, número que faz referência à Lei 10.639/2003, que estabelece o ensino da história e cultura afro-brasileira, da África e dos afrodescendentes nas escolas.

Ao longo dos anos, o trabalho com as bibliotecas impulsionou outras frentes. Bel decidiu fazer um mestrado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP para aprofundar o impacto das bibliotecas comunitárias. “Entrei no mestrado muito para abrir um caminho para os jovens da biblioteca. Entrar na universidade é também uma forma de levar para a academia essa possibilidade de a gente pesquisar de dentro”, afirma.

A dissertação, defendida na área de turismo, discutiu o conceito de mobilidade a partir do que as bibliotecas provocaram no território. “Os meninos passaram a vir para o centro, frequentar os eventos. A turma do centro, de outras cidades, de outros países, passaram a ir ver uma biblioteca dentro de um cemitério.”

Prêmio Jabuti

Bel defendeu sua dissertação na EACH em 2021, sob supervisão do professor Thiago Allis. A dissertação na íntegra está disponível na Biblioteca Digital da USP. Já o trabalho coletivo nas bibliotecas teve o reconhecimento do Prêmio Jabuti três anos depois. “Já tem um processo ousado da gente achar que merece um prêmio. Isso já é um trabalho de autoestima bastante grande. O primeiro lugar para onde ele foi, foi para a mão das crianças. Elas falavam: ‘É nosso, ganhamos!’”, lembra Bel.

Sidinéia, que entrou no projeto como educanda e passou a ser educadora pouco tempo depois, hoje atua em diferentes frentes do projeto. Além da literatura, passou a organizar ações de cultura, esporte e permacultura. Uma dessas ações é a chamada Rua Adotada, que transforma temporariamente as ruas da comunidade em espaços de convivência e brincadeira. “A gente fecha as duas pontas da rua. Cada trecho tem alguma atividade acontecendo ao mesmo tempo. Uma hora a Sidinéia tá lá no futebol com os meninos, eu tô aqui na dança com as meninas. A gente acaba trocando os públicos”, relata Tamires Santos, outra educadora do projeto.

Biblioteca Azul das Ondas, em Parelheiros – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Tamires é moradora do bairro de Vargem Grande, também no distrito de Parelheiros, e relata que conheceu o projeto por meio de sua mãe, natural do Maranhão, que aprendeu a ler já adulta nas bibliotecas comunitárias. “Eu saí do emprego que eu estava e essa educadora falou, ‘você vai ter que entrar no projeto, você tem muito conhecimento pra passar’. E aí eu fui entrando nesse meio social”, conta Tamires, atualmente com 34 anos, oito deles participando do projeto.

Tamires e Sidinéia participam da mobilização pelo novo terreno e de ações de educomunicação com o Vozes de Parelheiros, uma agência de comunicação comunitária criada para contar a história do território.

“A gente tem feito tanta coisa, como isso chega até as pessoas? Os jornais mostram a falta de iluminação, de segurança, a poluição, mas a parte cultural não é colocada em pauta. Quando a gente criou a agência, foi para pensar assim: quem vai falar sobre esse território somos nós mesmos”, afirma Sidinéia.

Ao longo de 17 anos, o projeto das bibliotecas comunitárias consolidou cinco linhas de atuação: cuidados (especialmente na primeira infância), educomunicação, literatura, empreendedorismo social e cuidado ambiental. A aposta é de que o direito à leitura seja porta de entrada para uma transformação maior. Como Bel resume: “Nada sobre nós sem nós. A gente tem orgulho de escrever os livros da nossa comunidade”.

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