Rio de Janeiro – A lona azul e branca do Circo Voador foi erguida pela primeira vez, pela geração de brilhantes e desbundados artistas, em 1982, na praia do Arpoador (RJ). Naquele mesmo ano, essa mesma galera plantou as palmeiras, atrás dos Arcos da Lapa, onde o Circo Voador pousaria permanentemente. O Brasil estava no fim da ditadura militar e logo o dia nasceria feliz.
Quase dez anos antes, em 1973, Jorge Ben Jor estava em Paris, ao lado de seu amigo Gilberto Gil, e eles visitaram um antigo restaurante num imóvel cujo primeiro dono tinha sido um rico livreiro que também foi o mais famoso alquimista da história: Nicolas Flamel.
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Em uma entrevista, Jorge admitiu que teve uma visão lá – Gil também viu – e seis meses depois ele lançaria o mais cultuado dos seus quase quarenta álbuns: A Tábua de Esmeralda. Era um período pesado da ditadura e o Babulina trouxe à luz uma espécie de compêndio em forma de 12 canções dos princípios da alquimia baseado na Tábua Esmeraldina, atribuída a Hermes Trismegisto, que criou as bases deste saber em 650 d.C.
Uns 15 anos no futuro, em 1991, Chico Science e Fred Zero Quatro (que seriam os líderes das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S/A) escreveram um texto, cuja forma tem clara inspiração no antropofagismo de Oswald de Andrade, Manifesto dos Caranguejos com Cérebro, que indicava os caminhos de uma “new wave tardia” brasileira.
Era um tentativa de universalizar elementos da cultura nacional, mas acertando o passo com o cenário cultural mundial depois de meio século de atraso. Um Brasil cosmopolita que engolia e devolvia uma arte original e que foi além da música, começando no ano em que o famigerado presidente Collor confiscou o dinheiro da poupança do povo.
Dois anos depois, em 1993, após quase uma década de um inexplicável ostracismo, Jorge Ben Jor voltava às paradas com W Brasil no mesmo tempo em que Da Lama ao Caos, da Nação Zumbi, era a Tábua de Esmeralda daquela geração.
Neste período, os primeiros anos do Plano Real, o Circo Voador era um dos principais pontos da noite carioca, e A Nação e Jorge Ben tocaram lá, até que, em 1996, após os fãs da banda punk Ratos de Porão vaiarem o esquecível prefeito recém-eleito, a casa foi fechada por oito anos.
Chico Science morreu no ano seguinte, em um acidente de automóvel em Recife, mas, após o luto, a Nação Zumbi continuou fazendo seus próprios discos e outros projetos muito interessantes, como Los Sebosos Postizos, banda que reuniu, em 2012, parte de seus integrantes para recriar em arranjos elegantemente psicodélicos as canções de Jorge Ben Jor.
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Dois anos antes, 2002, cresceu o movimento pelo retorno do Circo Voador, num momento de renascimento cultural do bairro da Lapa, até o retorno triunfal em 2004.
Em 2018, Jorge Ben Jor passou a morar no Copacabana Palace, o mítico hotel do luxo à beira-mar, onde atravessou, sozinho, com a equipe do Copa, a pandemia de Covid no terrível período do governo Bolsonaro.
Em 2024, o álbum mais importante, mais cheio de caminhos, histórias, mistérios, sutilezas, fez 40 anos, e os Sebosos Postizos fizeram um show só com suas interpretações peculiares psicodélicas dessas músicas, e este show foi levado a efeito no Circo Voador na noite dessa última sexta (9).
Não sei quantas pessoas cabem no Circo, mas tinha duas mil a mais que a lotação, e para todas elas Jorge Du Peixe (vocal), Dengue (baixo) e Gustavo da Lua (percussão), acompanhados de Carlos Trilha (teclados), Pedro Baby e Lello Bezerra (guitarras) e Vicente Machado (bateria), transformaram o ouro de Ben Jor em música.
As interpretações deles sobre os princípios da transmutação, destilação e coagulação foram colocadas nos cadinhos certos pelo SP num show cujo ponto alto é Zumbi, a música que faz com que todas as tradições da música afro-brasileira convergissem para Jorge Ben e eu que quero ver quando Zumbi chegar.
Para quem conhece um pouco de Kabbalah, as regras herméticas, e escolheu o tempo de seu precioso trabalho, sabe que a noite, o concerto, a tábua, o circo e a Lapa não aconteceram por acaso — e me desculpem se exagerei em alguma destas ligações ou confundi algum número ou data. Errare humanum est.