No final dos anos 1950, antes da ascensão mundial da bossa nova e uma década antes de os principais nomes da MPB estrearem nos festivais de televisão vestidos de smoking, a música de Jocy de Oliveira já estava décadas à frente de seu tempo.

+ Leia Também + Festival In-Edit Brasil apresenta documentários musicais nacionais

Pioneira da música eletrônica e das criações multimídia, com os pés fincados na vanguarda do que se produzia naquela época, a curitibana já tinha carreira como solista de orquestra quando, em 1959 — mesmo ano do lançamento do icônico Chega de Saudade, de João Gilberto — lançou seu primeiro disco.

Trata-se de uma obra experimental, teatral e pós-moderna: uma espécie de sátira atonal à ingenuidade bossanovista, registrada no impactante A Música Século XX de Jocy. Hoje, ela o define como “o segredo mais bem guardado da música popular brasileira”.

Mas talvez seja mais justo dizer que o disco representa um dos maiores exemplos de apagamento de uma artista nunca plenamente compreendida ou respeitada — salvo por um pequeno, porém significativo, grupo de colegas, críticos e admiradores.

“O ritmo amétrico, a harmonização beirando o atonalismo e a independência das linhas melódicas e instrumentais eram questões nunca antes abordadas na música popular brasileira e subvertiam vários parâmetros convencionais”, disse Jocy em entrevista à Folha de S.Paulo.

Relançado em 2018 na Europa pelo selo Litoral Records, o disco aborda temas ainda atuais, como a desigualdade social. Mesmo assim, raramente é citado na chamada “linha evolutiva da música popular brasileira”, embora tenha antecedido — e com sobras — movimentos frequentemente exaltados como fundadores do ethos musical do país.

Apague meu Spotlight

Nos anos seguintes, Jocy radicalizou ainda mais sua obra e aprofundou sua pesquisa em música contemporânea. Apague Meu Spotlight, composta com Luciano Berio, foi o primeiro evento de música eletrônica realizado no Brasil. A estreia aconteceu em 1961, no Theatro Municipal de São Paulo, com produção de Ferreira Gullar e direção e cenografia de Gianni Ratto.

Segundo o crítico Arthur Dapieve, do jornal O Globo, “o espetáculo, com coreografias expressionistas, cenários compostos por luzes e a voz dos atores se misturando à música, seria uma espécie de ópera com música eletroacústica, numa época em que nem havia tecnologia para se gravar coisas assim no Brasil”.

A solução encontrada por Jocy foi trabalhar a trilha sonora da peça por correspondência: enviava e recebia fitas de Berio — amigo pessoal e um dos nomes centrais da música experimental do século XX — diretamente do Estúdio de Fonologia de Milão. Segundo Fernanda Montenegro, que participou do espetáculo, “o Municipal foi sacudido por essa presença sonora única durante dez dias”.

Essas e outras histórias são relatadas no livro Alucinações Autobiográficas, lançado por Jocy em 2024. Na obra, a artista narra sua trajetória a um personagem fictício, evocando infância, raízes familiares e o papel das mulheres ao longo da vida.

Pioneira da música eletrônica, artista apresenta livro, filme, concerto e palestra sobre sua trajetória. Foto: acervo pessoal

Neste mês de maio, Jocy retorna a Curitiba, cidade onde sua trajetória começou, para um evento inédito, imperdível — e, por que não, impagável: a Mostra Jocy de Oliveira – Uma artista curitibana, que acontece de 20 a 25 de maio, com entrada gratuita.

Idealizada e produzida por Alvaro Collaço, a mostra conta com apoio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba, da Prefeitura de Curitiba, do Ministério da Cultura e do Governo Federal. Também colaboram o ICAC, Museu Alfredo Andersen, Secretaria de Estado da Cultura, Unespar e Embap.

“A ideia é proporcionar um encontro de Jocy com artistas e o público da cidade. E permitir o acesso à sua obra”, afirma Collaço. Em 2013, ele já havia trazido a artista a Curitiba com a ópera Sol(o), apresentada na Capela Santa Maria. “Agora, o espectro é mais amplo. Haverá conversa, palestra, filme, concerto e lançamento de livro. Participam artistas curitibanos ou residentes na cidade, como Lilian Nakahodo, Sérgio Albach e Felipe Ribeiro, além da principal intérprete da obra de Jocy, a soprano carioca Gabriela Geluda.”

Para a artista, trazer a mostra a Curitiba significa “uma volta à memória, ao sonho, aos quintais de minha infância”. Um trecho do livro ilustra esse espírito:

“Se as memórias me são sopradas pelo inconsciente ou pela faixa onírica da imaginação, não sei.
E isso importa?
O que importa é que hoje, ao examinar as imagens que meu olhar de criança captou, posso fazer uma leitura muito mais profunda ou decodificar códigos incompletos que se transformam em eventos vividos mais tarde.
Precisei viver muitas décadas para conseguir a chave que abre metáforas e enxerga por meio de arquétipos.
Será que aqueles anos de infância foram a síntese do que eu viria a viver no futuro?”

Carreira multifacetada

A carreira de Jocy é extensa e multifacetada. Solista da Orquestra Sinfônica Brasileira, participou da inauguração do Guairão, em Curitiba. A partir dos anos 1970, passou a combinar instrumentos acústicos e eletrônicos, teatro, vídeos e instalações sonoras em suas composições, com o objetivo de reformular o formato tradicional da ópera. No currículo, reúne nove óperas multimídia, aclamadas no Brasil e no exterior.

Jocy Oliveira: vanguarda e pioneirismo. Foto: acervo pessoal

Eleita para a Academia Brasileira de Música, é Doutora Honoris Causa pela UFRJ desde 2015 e Mestre em Artes/Música pela Washington University (EUA). Gravou 25 discos em países como Brasil, Inglaterra, EUA, Alemanha, Itália e México, além de ter registrado a obra pianística de Olivier Messiaen nos Estados Unidos.

Como escritora, publicou oito livros. Diálogo com Cartas (SESI-SP, 2014), vencedor do Prêmio Jabuti, foi também lançado em Paris pela Editions Honoré Champion. Como cineasta, produziu oito vídeo-óperas, entre elas Berio sem Censura, Revisitando Stravinsky e LiquidVoices.

PROGRAMAÇÃO – MOSTRA JOCY DE OLIVEIRA – UMA ARTISTA CURITIBANA

20/5 (segunda-feira)
Conversa entre Jocy Oliveira e o compositor Felipe Ribeiro no Memorial de Curitiba, com apresentação de sua trajetória artística.

21 e 25/5 (quarta e domingo)
Exibição do filme LiquidVoices – A História de Mathilda Segalescu, dirigido por Jocy, na Cinemateca de Curitiba. O longa funde linguagem cinematográfica e ópera. Premiado em nove festivais na Europa, Israel, EUA e Chile, está disponível em plataformas de streaming. A distribuição internacional é da NAXOS.

22/5 (quinta-feira)
Concerto na Capela Santa Maria com obras de Jocy, interpretadas por Gabriela Geluda, Lilian Nakahodo e Sérgio Albach.

23/5 (sexta-feira), às 15h
Palestra com Jocy Oliveira no Auditório Praça Tiradentes da Escola de Música e Belas Artes.

24/5 (sábado), às 10h30
Lançamento do livro Alucinações Autobiográficas no Museu Alfredo Andersen. Na ocasião, Jocy doará ao museu um quadro de seu acervo pessoal, pintado por Alfredo Andersen em 1894.

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Compartilhar.

Sandro Moser é jornalista e escritor.

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

wpDiscuz
0
0
Deixe seu comentáriox
Sair da versão mobile