Ela brinca com as expectativas do seu tempo. Simula intimidade, mas mina a linearidade narrativa com cortes, colagens e jogos de palavras. Utilizando uma linguagem com expressões e falas cotidianas, cria textos densos e reflexivos. É assim que o professor francês Michel Riaudel, da Universidade Sorbonne, em Paris, na França, se refere à poeta, escritora e crítica literária carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983).
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Riaudel é autor do e-book A Nebulosa Marginal e Ana Cristina Cesar, que será lançado no dia 29, quinta-feira, às 14 horas, em live a ser transmitida pelo canal da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP na plataforma digital Youtube, com a participação do professor francês. O livro traz a tradução de partes da tese de doutorado de Riaudel, defendida na França em 2007, que trata da obra de Ana Cristina Cesar. O e-book está disponível gratuitamente, na íntegra, neste link.
Na obra, Riaudel analisa livros marcantes de Ana Cristina Cesar – como Cenas de Abril (1979), Correspondência Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980) – para apontar a marginalidade na obra da poeta. “Ana Cristina Cesar foi ‘marginal’ de muitas maneiras, através de suas relações e de sua consciência crítica, que a fez refletir e escrever sobre o movimento marginal”, afirma Riaudel em entrevista ao Jornal da USP. “A poesia de Ana Cristina é vertiginosa”, acrescenta.
“A margem não é da revolução, da ruptura. Ela se desinteressa pelo centro e busca proximidade em vez de grandes ideias e projeções”, continua Riaudel, referindo-se à Poesia Marginal, movimento literário da década de 1970 marcado pela independência editorial e pela valorização do cotidiano, da liberdade estética, da ironia e da resistência política.
“Além de conter a densidade da tese do professor Michel Riaudel, esse livro é importante para fortalecer a bibliografia sobre Ana Cristina Cesar em português e ampliar o acesso gratuito a um material de pesquisa relevante”, ressalta a pesquisadora Raquel Machado Galvão, uma das tradutoras do e-book, que atualmente faz pós-doutorado na FFLCH, sob supervisão da professora Viviana Bosi. Ela acredita que a obra servirá para a promoção de novas perspectivas e estudos sobre a poeta carioca e a Poesia Marginal. “Ana Cristina Cesar mudou minha percepção de mundo, e acredito que pode mudar a de outros leitores também.” Galvão revela que um e-book com a tradução de outras partes da tese de Riaudel deve ser publicado no próximo ano.
“Reconhecido estudioso da literatura brasileira, Riaudel é um dos pioneiros no estudo da produção poética de Ana Cristina César”, escreve a professora Viviana Bosi no prefácio do e-book, destacando que o professor coletou “material precioso em primeira mão” sobre a poeta. “Apresenta dados fundamentais para a compreensão do contexto em que surgiu a Poesia Marginal carioca. Percorre e esclarece grupos de afinidade, coleções publicadas, revistas. Seleciona de forma clara e enxuta os episódios centrais da história literária desse movimento, desde seus primeiros sinais.”
A geração mimeógrafo
Às margens do círculo editorial dominante na década de 1970, a vertente literária recebeu o cunho de marginal devido ao modelo de produção independente dos poetas, que rejeitavam a publicação de suas obras por grandes editoras para distribuí-las de formas alternativas. Em meio ao cenário de repressão imposto pela ditadura militar brasileira e ao movimento de contracultura, esses autores ficaram conhecidos como “geração mimeógrafo”, já que utilizavam mimeógrafos para copiar e reproduzir seus poemas e, assim, encontrar maneiras de driblar a censura, expressar resistência política e manifestar suas críticas à sociedade. Na busca pela marginalidade, elementos como a linguagem coloquial, o resgate da cultura popular, o humor sarcástico e o desprezo pelas formas poéticas tradicionais eram aliados dos artistas.
O marginal tem algo do malandro, uma figura tipicamente carioca com um perfil simpático e astuto, engenhoso, manhoso. É um sedutor que não mostra claramente suas intenções, e mantém um sorriso em todas as circunstâncias.
– Michel Riaudel, em A Nebulosa Marginal e Ana Cristina Cesar
Além de traçar um panorama histórico de surgimento da Poesia Marginal – que teve os poetas Torquato Neto e Waly Salomão como precursores – e de situar a obra de Ana Cristina Cesar em meio ao movimento literário, Riaudel ainda discute as principais características desse estilo poético. Uma delas é a relação entre a Poesia Marginal e o Tropicalismo, que, segundo o pesquisador, é marcada por ambivalências e ambiguidades. Segundo o professor, enquanto o movimento tropicalista herdou da poesia marginal o caráter de crítica e denúncia, os marginais abandonaram o discurso grandioso e o espetáculo, focando em uma poética da delicadeza, da subjetividade e do fragmento. “A ruptura com o Tropicalismo é estética e geracional. Diferentemente do Tropicalismo, na Poesia Marginal há uma profunda crise do sujeito que se reafirma para tentar tomar pé na realidade”, afirma.
Riaudel explica que o ambiente universitário era um núcleo efervescente de articulação dos poetas marginais, que formaram redes e projetos coletivos. Ana Cristina Cesar, então estudante de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), integrava essas agitações literárias, bem como já publicava poemas, textos em prosa e críticas jornalísticas em coletâneas, revistas e jornais. Em 1976, Heloísa Teixeira, sua professora na PUC, a incluiu na antologia 26 Poetas Hoje, uma seleção de habilidosos representantes daquela geração. “A coletânea foi responsável por institucionalizar o que era conhecido como literatura marginal nos anos 1970”, afirma Raquel Galvão.
A Nebulosa Marginal e Ana Cristina César, de Michel Riaudel, tradução de Bruno de Oliveira Couto, Raquel Machado Galvão e Victoria Zanetti Largura, Editoras Mambembe e Conexões Críticas, 172 páginas. A obra está disponível gratuitamente neste link.
O lançamento do livro acontece no dia 29, quinta-feira, às 14 horas, em live a ser transmitida pelo canal da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP na plataforma digital YouTube. Grátis. Não é preciso fazer inscrição.