“Estamos no meio do caminho”, aponta Octavio Camargo, indicando com as mãos a situação de momento do mais ambicioso projeto teatral em andamento no Brasil.
Criada por ele em 1999, a Cia. Iliadahomero só vai se dar por satisfeita quando apresentar o “rito homérico” completo, ou seja, os mais de 15 mil versos dos textos integrais da Ilíada e da Odisseia, tal como eram apresentados nas panateneias, as celebrações religiosas em honra a deusa Atenas, uma espécie de slam grego no século IV antes da Era Comum.
Nos cálculos do diretor, o espetáculo levaria cerca de quatro dias. Desde a Olimpíada de Atenas, em 2004, Octávio planeja encenar a experiência completa durante os jogos. Quase deu nos Jogos do Rio, em 2016, mas ele não desistiu de fazer dar certo nas Olimpíadas de Los Angeles, justamente pelo grau de tensão política que prevê no evento.
Aprendi a não duvidar dele.
Pois seus projetos artísticos parecem eivados do dom da ubiquidade. Nos próximos dias, sua mais recente colaboração para o cinema, o filme Nem Toda História de Amor Acaba em Morte, dirigido por Bruno Costa, em que trabalhou como ator e compositor da trilha sonora, vai estrear no Festival de Pernambuco e, dias depois, no Festival Olhar de Cinema, em Curitiba.
Octavio também fez a trilha e sonoplastia da impressionante exposição Desse Lado do Muro, no MIS-PR, criando os elementos sonoros que compõem a expografia nas celas da antiga cadeia no centro de Curitiba. Com sua voz grave, ele também lê, ao lado da atriz Chris Gomes, cartas escritas por presos.
Nesta quarta-feira (28), o ator Adriano Petermann encena o Canto 17 da Ilíada, no Teatro Mini Guaíra, justamente um dos momentos preferidos do diretor em toda a epopeia homérica: a batalha entre gregos e troianos pela posse do cadáver de Pátroclo. Eis o paradoxo fundamental expresso por Homero, que é um pouco a luta de quem faz arte: lutar até a morte por algo irremediável, uma guerra que, como todas as outras, não faz o menor sentido.
No final de semana, a Íliada em Libras – Canto I será levada até o norte do Paraná em sua temporada de circulação. No sábado, em Londrina, no Teatro AML Cultural; no domingo (1º), em Apucarana, no Cine Teatro Fênix.
A montagem em Língua Brasileira de Sinais tem sido gestada por quase dez anos, numa união da direção ouvinte de Octavio com Rafaela Hoebel (surda), numa tradução com performance interpretativa do ator Jonatas Medeiros.
Como ninguém disse que era impossível, eles foram lá e fizeram – mas nada mais surpreende neste projeto em que o grande Beto Bruel, o gênio da lâmpada, já concebeu, por exemplo, mais de cem iluminações diferentes, uma para cada ator que já integrou a companhia nestes mais de 25 anos. Garanto que, logo, algum dos cantos do poema grego estará em algum teatro, em algum outro canto do Brasil ou do mundo.
Essa ideia de montar como teatro, na íntegra, os textos mais importantes da literatura mundial demonstra outra característica do trabalho de Octavio: a reincidência. Uma vez, aconteceu no dia em que, já respeitado como músico e artista plástico conceitual, Camargo acordou (talvez mal tenha ido dormir) e decidiu que a coisa certa a se fazer era adaptar para o teatro o texto mais hermético já escrito em sua aldeia.
Nascido em Florianópolis, Octávio é, desde os anos 1960, um morador símbolo do bairro Cristo Rei, em Curitiba. Desde o primeiro ano de idade, Octávio teve, como muitos artistas de sua geração, o coração lancetado pelo Catatau, o monolito polifônico e antropofágico de Paulo Leminski. E assim, em 20 noites frias de junho e julho de 2015, a justa razão do Catatau delirou no palco do Teatro Novelas Curitibanas.
Antes, em 2009, dez anos depois de começar a aventura homérica, ele reincidiu ao trabalhar o texto mais hermético da contemporaneidade no mundo ocidental: o Finnegans Wake, de James Joyce.
Ou seja, a opção nunca é pelo caminho mais fácil. A grande prova disso é sua decisão de utilizar, em suas encenações da Ilíada, a tradução de Manuel Odorico Mendes (1799–1864), aquele a quem Haroldo de Campos chamava de “o patriarca da tradução criativa – da ‘transcriação’ no Brasil”.
Além de comprovar a radicalidade do projeto, a escolha é uma homenagem à inteligência do público, segundo o crítico Patrick Pessoa, uma das centenas de pessoas que assistiram à montagem da Ilíada em 2016, no Teatro Londrina, durante o Festival de Curitiba, que durou 24 horas. “Quaisquer procedimentos redutores da complexidade de Homero, obrigando o público a conviver com a estranheza do clássico nos seus próprios termos”, escreveu o crítico.
A primeira vez que A Ilíada em Libras foi montada foi durante a Mostra Surda do Festival de Curitiba, e cada noite daquele evento rendeu histórias arrasadoras. “É a arte interferindo no cotidiano da cidade”, me disse, satisfeito com aquilo que sente como uma das mais importantes conquistas de qualquer empreitada cultural.
Sua primeira grande performance a atingir este objetivo foi em 1995: a obra Pé com Cabeça, ativada no evento Sou + UNESPAR por um elenco de artistas, pesquisadores, docentes e estudantes da universidade.
Não é fácil de explicar (veja o vídeo acima), mas o autor diz que a obra chama atenção para o percurso mecanizado do andar cotidiano, como a pedir uma pausa nos processos dinâmicos e indissociáveis entre pensamento e ação crítica.
“Eu chamo de uma escultura pública efêmera que traz a ideia de um anti-monumento. Porque o monumento é legal, mas também é um problema, um estorvo na cidade. Este trabalho tinha uma dimensão monumental, mas que sabia a hora de desaparecer”
A performance incorporava, em forma e força, a “matéria humana que constitui a universidade” como um corpo coletivo. Pé com Cabeça: juntos, inseparáveis, um no outro, com o outro, pelo outro.
E foi assim que Octávio, que um dia achou que seria médico, tornou-se um dos nomes mais importantes da arte conceitual contemporânea, com atuação internacional.
A carteira de trabalho de Octavio Adão de Camargo Neto, porém, é de um professor de música que há algumas décadas estuda a arquitetura da composição musical da chamada música erudita, de câmara e de concerto.
Porém, muito inspirado pela usina boêmia de canções do poeta Thadeu Wojciechowski, um dia sentou-se no balcão da composição popular e nunca mais saiu. Tem algumas centenas, com parceiros diversos, todos os ritmos imagináveis, com acidentes e soluções poéticas surpreendentes.
Um dos últimos trabalhos do gênio, do griô, do magistral Nelson Sargento foi cantar Manoel, de Octávio e Chico Paes, um samba sofisticado em que o que não está dito parece sobrevoar a letra da canção.
Octávio, seu violão e sua casa estiveram no epicentro de um movimento de composição musical que revelou uma geração de compositores em Curitiba, como Alexandre França, Troy Rossilho, Carlos Machado, Luis Felipe Leprevost e tantos outros. Criador em tempo integral, Octávio compõe mesmo com o violão encostado, escreve teatro falando de política madrugada adentro.
Para ele, o trabalho poético é como uma arapuca de fios invisíveis. Alguns são quebradiços, outros, incorruptíveis. A arte está em saber quais puxar, como e até onde puxar as pontas certas para que elas rasguem o tecido do poema, se encontrem em algum ponto dessa teia e liguem ideias, palavras, sentidos que não se encontrariam se assim não fosse.
Parece complexo — e é —, mas ele prefere assim, e tem dado certo, ainda que não seja fácil e dê bastante trabalho, sem que isso seja doloroso.
Com Octavio Camargo, as coisas são assim.
Sensacional!
Quem acompanha a de arte em Curitiba já ouviu falar em Otávio Camargo. Baita professor e profissional das artes.
Grande referência cultural do país… Curitiba é minúscula para ele.
E ele ainda é um guri…
Otavio é um gigante.
Octavio, gênio apaixonado. Um orgulho!