Por Gabriel Costa
A paixão é um vício. Para a neurociência, apaixonar-se ativa o mesmo sistema no cérebro que drogas como a cocaína. Mas é mais do que isso: é devorar-se no outro. Ter sua existência completamente abalada por outra vida. Um rompimento no espaço-tempo tão poderoso que faz do “sentido” algo presente apenas nos livros de ciência.
No filme Salomé, de André Antônio, que foi exibido no festival Olhar de Cinema, isso tudo é levado a sério da forma mais tosca — e original — possível. A obra, inspirada no mito bíblico de mesmo nome, é uma prova de que o cinema brasileiro ainda pode se reinventar.
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Logo no início do longa somos apresentados a Cecília — interpretada por Aura do Nascimento —, uma modelo bem-sucedida, natural de Recife e residente em São Paulo. O filme acompanha sua jornada de volta à terra natal, onde tudo permanece igual, mas ela enxerga com outros olhos.

A família de Cecília é tipicamente brasileira: uma mãe devota do catolicismo, uma prima que vive sem temer o amanhã e uma tia fofoqueira. A casa deles poderia ser a sua, a minha ou a do seu vizinho. André molda o filme à brasileira. Em uma era marcada por obras que imitam a linguagem americana, Salomé surge como uma novidade interessantíssima.
O mundo de Cecília é abalado quando ela entra em contato com a droga mais perigosa que existe: a paixão. Ao reencontrar João, o filho da vizinha, descobre que há apenas uma coisa no mundo que deseja — ele.
Nas festas queer de Recife, os dois iniciam sua relação. Tudo regado a muito loló — ou lança-perfume — e álcool. É nesse momento que o filme começa a revelar sua verdadeira cara: um maneirismo tosco, divertido e reflexivo. André se inspira nos melodramas clássicos de Hollywood apenas para distorcê-los completamente — como fizeram os grandes mestres maneiristas do cinema.
O filme tem um senso de humor afiadíssimo e caminha sempre numa linha tênue entre o escrachado e o real, o fantasioso e o mundano — potencializado por ótimas atuações de seus protagonistas.
Ao contrário da vida real, o loló de João é verde neon. Ele é diferente de tudo o que Cecília já experimentou — e ela se entrega à experiência como quem se devora, sem se importar com o que vem depois.
Salomé traduz o que é sentir obsessão por outra pessoa. Somos capazes de ferir a nós mesmos, nossa família, e abrir mão de tudo para ter mais um segundo compartilhando o mesmo céu desse outro alguém.
João trabalha na mesma empresa que produz o loló verde neon. Seus chefes são dois homens carecas, animalescos e alienígenas. André carrega o filme de referências assim. Afinal, o sentimento de Cecília não faz sentido — não é deste mundo.
É comum vermos cineastas buscando incansavelmente o “real”. Se não parece real, não é bom. André se desprende de qualquer amarra que poderiam pôr sobre ele. Ele é ousado e domina a técnica. Não é o choque pelo choque. É apenas ele sendo quem realmente é.
Assim como no mito bíblico, Salomé recebe a cabeça de seu amado em uma bandeja. Cecília se torna Salomé depois de se devorar na paixão — em uma decisão artística que proporciona uma sequência que nos lembra os melhores filmes surrealistas do cinema.
Salomé não tem medo de abraçar o tosco. Por momentos, lembra outro grande filme brasileiro: Falsa Loura, de Carlos Reichenbach. André conseguiu fazer um filme que traduz o Brasil sem parecer forçado, com um resgate de uma linguagem cinematográfica que por vezes parece perdida.
A nós, resta devorar-se na experiência de Salomé. Nem tudo precisa ser entendido. Às vezes, sentir é o necessário — especialmente na arte.