Com informações do Jornal da USP 

Você com certeza já ouviu: “Está chegando a hora / O dia já vem raiando, meu bem / Eu tenho que ir embora”. Ou talvez consiga cantarolar: “Quem parte leva saudades de alguém que fica chorando de dor” e “Eu tenho uma casinha lá na Marambaia / Fica na beira da praia, só vendo que beleza”.

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As canções são Tá Chegando a Hora e Só Vendo Que Beleza. Lançadas no carnaval de 1942, imortalizaram-se na voz de grandes nomes da música popular brasileira. Seus versos ecoaram pelos estádios e também em manifestações políticas ao longo do século XX.

O autor dos dois sambas é Henrique Felippe da Costa, conhecido como Henricão. Nascido em Itapira (SP), foi o primeiro Rei Momo negro eleito no carnaval de São Paulo, em 1984. Sua trajetória foi tema da pesquisa de doutorado em Antropologia de Bruno Ribeiro da Silva Pereira, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Cultura negra urbana e modernidade brasileira

O estudo investiga os 30 anos mais ativos de Henricão, entre as décadas de 1930 e 1950. Nesse período, o artista transitou entre São Paulo e Rio de Janeiro, contribuindo de forma significativa para a consolidação da cultura negra urbana brasileira.

Filho de pais negros e devoto de São Benedito, cresceu participando das festas de 13 de maio em Itapira, com congadas e sociabilidades entre negros e imigrantes italianos. Na juventude, mudou-se para São Paulo, onde encontrou nos cordões carnavalescos espaços de acolhimento e projeção. Atuou no Cordão Camisa Verde, na Barra Funda, e participou da fundação da escola de samba Vai-Vai, no Bixiga.

No teatro, ingressou por influência de um irmão, com quem criou uma companhia de artistas negros. Henricão atuou também em O Bailado do Deus Morto, de Flávio de Carvalho, apresentado no Clube dos Artistas Modernos. Parte do figurino da trupe foi usado no primeiro desfile da Vai-Vai.

Dos estúdios ao reconhecimento tardio

Henricão atuou em rádios paulistanas como Record, Kosmos e Cruzeiro do Sul. No início dos anos 1940, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde frequentava redutos do samba como o Café Nice. Ali conviveu com Carmem Costa, Francisco Alves, Ataulfo Alves e Heitor dos Prazeres.

Gravou cerca de 40 músicas nas décadas de 1930 e 1940. Os maiores sucessos vieram da parceria com Carmem Costa, com quem também se apresentou em diversas capitais. Participou do filme It’s All True (1942), de Orson Welles, ao lado de Grande Otelo, e atuou em longas da Companhia Vera Cruz e em produções de Amácio Mazzaropi, como Sinhá Moça (1953) e Jeca e Seu Filho Preto (1978).

Fora das artes, trabalhou como mecânico, motorista e vendedor de carros. Foi nessa última função que reapareceu na imprensa no fim dos anos 1970, após ser localizado pelo jornalista Júlio Moreno, da Folha de S. Paulo. O reencontro impulsionou um breve retorno à música e à televisão.

Em 1980, lançou seu único LP solo, Recomeço, com regravações de antigos sambas. Quatro anos depois, foi eleito Rei Momo do carnaval paulistano — gesto simbólico que coroou sua trajetória cultural e reafirmou sua importância para a história da cidade.

Uma memória entre samba, teatro e resistência

Seguno o estudo, a história de Henricão é marcada pelo trânsito entre diferentes linguagens culturais. Sua atuação revela caminhos abertos e barreiras enfrentadas por artistas negros nas capitais do Sudeste no século XX. Mais do que um caso individual, seu percurso ajuda a compreender como se formam as memórias culturais das cidades e das tradições populares.

Como propõe Michel de Certeau, é no cotidiano que se articulam as complexidades das construções simbólicas. Henricão foi um elo entre mundos, entre ofícios, entre palcos e ruas — um artista do Brasil moderno.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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