Enquanto a música pop brasileira de sua geração usava bermudas, o compositor, escritor e multiartista Fausto Fawcett antecipou em quatro décadas o pesadelo apocalíptico do século 21. Fawcett vai passar uma semana em Curitiba a partir desta segunda (23) ministrando a oficina criativa Infinito Cosmorama, com Eduardo Beu, no Wonka Bar (saiba mais abaixo).
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O pensador de Copacabana falou com o Fringe sobre como criou este guia para navegar e criar no caos, enquanto a sociedade vai se zumbificando e desejando o próprio colapso desde que seja um fim espetacularizado.
LEIA A ENTREVISTA COMPLETA ABAIXO:
- FRINGE – Infinito Cosmorama é descrito como uma “expansão do verbo”. Que tipo de verbos — e de bons demônios — você quer liberar nesses encontros?
Fausto Fawcett – A minha intenção com a oficina é expandir algo que está contraído. Então, quando falo em expansão multicelular do verbo, é porque existem centenas, dezenas, bilhões de linguagens espalhadas por nichos antropológicos, espalhadas nas pistas de cultura humanista, como artes cênicas, cinema, literatura, audiovisual e artes plásticas em geral.
Espalhadas também em religião, em ciência. O que não falta são verbos, criações, são universos. Mas, como vivemos uma saturação de tudo, principalmente de linguagens, o que a gente acaba se defrontando é com uma contração, uma diminuição, uma distração, uma perda de atenção.
Com todas as telas, todos os aplicativos, existe uma boa dose de distração e de embotamento também. Dizem que é velocidade, que é rapidez de raciocínio, mas não é, não.
Então, a partir disso, me interessa refinar a atenção das pessoas, e a melhor forma de fazer isso — ou uma forma peculiar de fazer isso, de provocar faíscas filosóficas para a atenção ficar mais aguda, você ter uma expansão mesmo dos verbos, das várias células culturais — é fazer ligações inusitadas, de músicas, de filmes, de ciência, de religião, cosmologias que estão circulando como uma espécie de palimpsesto, de mash up, por aí, nas mentes das pessoas.
Então, essa é a intenção: expandir algo que está em contração, explorando todos os demônios, no sentido de daimons, de anjos de guarda, anjos da guarda aberta, entusiasmos que estão presentes em todas as linguagens, nas grandes cidades, nessa humanidade cheia de saturação.
- De Charles Manson a Marie Curie, você costura referências improváveis nos encontros do Infinito Cosmorama. Como você cria a teia que captura e une todas estas referências?
Não é uma questão de lógica, porque eu não estou unindo o Manson com a Marie Curie. São cinco módulos, cinco aulas, cada uma tratando de um assunto a partir da conjugação de dois elementos. E, daí sim, parto para digressões, raciocínios investigativos e poéticos, a partir do choque desses elementos — que podem ter similaridades, mas também podem ser completamente díspares.
Então, o Charles Manson tem a ver com a música Helter Skelter, dos Beatles, que está no Álbum Branco. O primeiro módulo é esse: os dois “álbuns brancos” — o duplo dos Beatles e o Beggar’s Banquet dos Rolling Stones — lançados em 1968.
Extraí duas músicas: Helter Skelter, do Paul McCartney, e Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones. Helter Skelter foi a música que inspirou Charles Manson a ordenar o assassinato de Sharon Tate. Sympathy for the Devil entra porque os Stones fizeram um show caótico em Altamont, em 1969, onde houve um assassinato.
Aliás, os dois discos são de 68, mas os dois acontecimentos — os assassinatos e o show — aconteceram em 69. E são uma pá de cal na contracultura. Então o assunto desse primeiro módulo é 1968 e a contracultura, vistos a partir dessas duas plataformas.
Depois têm Guimarães Rosa e William Burroughs: explorando as escritas inusitadas e instigantes dos dois, seus estilos, suas idiossincrasias metafísicas, religiosas etc. No terceiro módulo, vamos ao cinema: Apocalypse Now, do Coppola (1979), e eXistenZ, do Cronenberg (1999). Os títulos já são indicativos, né?
No caso dos Beatles e dos Stones, falo do que é muito antigo e ninguém segura. Isso diz respeito mais ao Sympathy for the Devil, né? Posturas, costumes, instintos humanos, fantasias, mitologias que atravessam o tempo — e que só são adaptadas, customizadas.
No caso do Guimarães Rosa e do Burroughs, é a “macumba verbal”: o chamado de todos os assuntos, de todas as figuras de linguagem, de todas as escritas sincopadas, arritmadas.
No caso do Cronenberg e do Coppola, o ser humano é um animal épico, né? Aí exploro aquele mito de Orfeu: o cara que vai aos infernos buscar a amada. Mas aqui, em vez da amada, temos os prazeres do game e o assassinato de um militar — um indo matar outro no Vietnã. É uma jornada de aventuras fora da normalidade cotidiana. Uns através da arte, outros através da guerra.
Aí vem Pierre e Marie Curie: a radiação amorosa. Uma abordagem sobre a importância e as mitologias em torno dos cientistas — os romantismos, os perigos, as ambiguidades em relação às descobertas científicas transformadas em tecnologia.
E, no quinto módulo, falo da agonia da matéria. Para resumir numa frase: é Einstein se encontrando com a mitologia hindu. Todas as facetas, todo o bestiário da cosmologia — universos instáveis, matéria escura, energia escura — até chegar em Brahma, Vishnu e Shiva. Shiva e Kali, né? Que são os movimentos do universo e, consequentemente, das vidas. Cada dupla tem sua importância dentro das temáticas de cada módulo.
- Você diz que vivemos uma “hiper exposição zumbi”. O que a palavra ainda pode fazer? Qual a força que ela tem diante desse estado de distração permanente?
É verdade. Uma das especulações que é possível fazer em torno disso é que estamos todos perdidos em termos de imaginário filosófico e ideológico. É como se você não tivesse exatamente um propósito — aquela história de que Deus morreu, e depois o ser humano também.
Por isso eu falo muito do zumbi, porque é como se a gente estivesse andando em ruínas, queira ou não queira. Tem gente que diz que isso aí é uma idiotice pós-moderna etc., etc., mas não é. Isso é um sentimento barroco, presente em todos há muito tempo.
E agora isso tudo está acelerado por muitos registros, pela velocidade absoluta que a vida — ou, como alguns preferem acentuar, que a vida capitalista — impôs. Mas eu acho que a coisa é um pouco mais religiosa, porque, como dizem certos pesquisadores, o mundo já foi teocêntrico — e aí vai desde Deus monoteísta até todos os panteísmos, animismos etc.
E já foi também, eminentemente, político. Claro que continua sendo. Claro que continua sendo religioso. Mas acontece que a religião metafísica, ou transcendental, ou mesmo imanente, passou para a política — a religião do político. E, de certa forma, a democracia, os Estados, nações, são sacudidos por empresas, por globalizações que aconteceram, mas também, agora, por fundamentalismos.
- O clima atual de paranoia nuclear lembra os anos 1980, mas com uma diferença: se antes as pessoas tinham pavor do que poderia acontecer, agora parece que há mais gente torcendo sadicamente para que a coisa exploda. Como você tem trabalhado literariamente essa escalada apocalíptica?
Coisas como “milenarismos” vão e voltam, só que agora em uma quinta marcha. E realmente, quando alguém está bem perdido e pensa “oh, eu quero algum porto seguro”, uma das saída mais patológicas é esse desejo de mudança absoluta através do aniquilamento.
Então é isso: dilúvios, Sodomas e Gomorras, contágios, e por aí vai. Um bug definitivo realmente está na mente das pessoas como se fosse um alívio, porque estão todas saturadas — inclusive delas mesmas. Esse é um dos pontos importantes. Mas é isso mesmo.
Na verdade, desde sempre, lido com essa perspectiva apocalíptica. Porque ela não tem a ver só com uma destruição, como a palavra evoca, mas principalmente com revelações.
Então acho que a transparência dos comportamentos humanos, a transparência das ocorrências, das pesquisas, a transparência do excesso de tudo — desde as vidas privadas, através das redes sociais, até todas as tramoias, todos os labirintos maquiavélicos da geopolítica e do ser humano.
E agora você tem tem coach para tudo. Você pergunta: qual é a operadora espiritual da pessoa? Quais as operadoras? Jesus Cristo, Marx, Allan Kardec, Helena Blavatsky… Quais as operadoras?
Então as coisas estão, ao mesmo tempo, reveladas, transparentes, mas — e aí que é o terrível — as coisas estão desaparecendo de tanto acontecer. São reveladas, mas não nos levam a um lugar, digamos assim, de equilíbrio no mundo ou na vida.
Então é como um quadro de Bosch. A crença no progresso ético e moral é que foi completamente destituída de seu valor sagrado. Algo que estava naquela música Imagine, do John Lennon, que vai te deixando enjoado… Você vai ficando meio bobão.
Então acho que também tem — acho não, tenho certeza — que essa decepção absoluta gera um pessimismo entusiasmado. Acho que vivemos uma época, na verdade, muito interessante e de grande ebulição do ser humano. Agora ele está uma fratura exposta como nunca esteve.
E aí, um dos entusiasmos, é esse: o desejo de um grande acontecimento. Como o World Trade Center, o atentado, o tsunami, a crise de 2008, ou uma nova peste, como nós tivemos …
Estão todos agora preparados para isso, pois estão saturados. Querem ser cada vez mais excitados para ter algum prazer, alguma êxtase, alguma catarse — seja ela religiosa ou política. Porque tudo é espetáculo apocalíptico, entretenimento sinistro.
Interessante a parte da operadora espiritual…..