Quando precisa definir, numa única palavra, seu primeiro longa de ficção, O Silêncio das Ostras, em cartaz em cinemas de várias cidades brasileiras, o diretor mineiro Marcos Pimentel diz que é um filme sobre o “abandono”.
Não apenas as perdas afetivas e materiais por que passa a protagonista, mas, sobretudo, sobre como a sociedade abandona o seu dever de cuidado com a natureza.
“Esse é o elemento fundamental. A gente está abandonando a paisagem ao mesmo tempo que Kaylane [a protagonista do filme] está sofrendo sucessivas perdas. Ela vai perder algo, e todo mundo também vai”, disse.
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Pimentel é um documentarista puro-sangue, autor de muitos e bons filmes de não ficção. Durante um bate-papo com ele e com a atriz Bárbara Colen, após a sessão de estreia no Cine Passeio, nesta quinta (3), em Curitiba, ele explicou que teve que contar esta história com roteiro ficcional por necessidade.
Há muitos anos, tenta fazer um documentário sobre a relação das mineradoras com a história de seu estado natal, Minas Gerais. Mas sempre esbarra em uma rede de proteção à operação dessas empresas, que vai da atuação de seguranças truculentos à proteção política escancarada.
O Silêncio das Ostras retrata a exploração de uma dessas empresas em uma vila de operários da mineração e o esgotamento que ela provoca na natureza e nas relações humanas.
Ambientada a partir dos anos 1980, a trama é vista por Kaylane, caçula de cinco irmãos, inquieta com mudanças e perdas. Sua mãe, Cleude (Sinara Telles), vive entre sonhos e traumas causados pelas mineradoras.
“Viúva de um marido vivo”, incapacitado pelo trabalho insalubre, vê os filhos seguirem o mesmo caminho. Na região, a única fonte de renda é a mineração.
Cosmovisão e fim do mundo
Usando a camiseta com os dizeres “O fim do mundo virá para todo mundo”, do projeto curitibano Puta Peita, Bárbara Colen, de Bacurau, falou sobre sua personagem.
Kaylane aparece no filme em três momentos: na infância, vivida pela atriz Lavínia Castelari; na juventude; e numa espécie peculiar de maturidade, quando se torna uma andarilha pelos escombros de uma Minas Gerais que já não existe. Nessa fase, usou figurinos inspirados pela artista paranaense Efigênia Rolim.
As partidas marcam a infância de Kaylane na comunidade operária. O tempo corre em outro compasso, longe da lógica produtivista. Ela cresce entre a dureza da rotina e uma forma particular de enxergar o mundo. Sua curiosidade mistura imaginação, sensibilidade e laços profundos com a natureza e os insetos ao redor.
“Ela é uma mulher que vai se encontrando. Uma figura muio especial. Como toda mulher, vive ao longo da vida uma série de tragédias e abandonos e com o passar do tempo, ela vai ficando cada vez mais isolada nessa vila. Mas ela é uma resistente, um ser que consegue se conectar com outras formas de vida e com outras potências que o mundo tem. Vejo ela muito através de uma cosmovisão indígena: Uma pessoa que ama, que nutre, que se conecta com os animais, com a natureza, e que vai atrás da vida, apesar de toda a dor e o abandono que essa vida pode trazer”, disse Barbara .
O diretor disse que, apesar de o argumento e o início do processo terem surgido muito antes dos crimes socioambientais das mineradoras em Minas, mas as tragédias mudaram o roteiro.
A obra insere cenas reais do rompimento das barragens que matou 270 pessoas e despejou 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos. A lama cobriu uma área de 270 hectares e chegou ao mar.
Os crimes vitimaram regiões inteiras de Minas mataram rios, percorreram estados numa escalada de lama e caos —um ensaio do grande armagedom climático que está no horizonte.“Eu adoraria não precisar ter feito esse filme, mas eu acho que eu precisava, para que essas coisas não se repitam”, disse.
Entre as filmagens, há três anos, e a estreia nos cinemas, algumas montanhas registradas pela câmera não existem mais. “Três anos foram suficientes pra desaparecer montanhas inteiras. Nem uma, nem duas. Um monte. Eu adoraria que esse filme fosse uma modesta contribuição pra que deixasse de existir essa categoria de ex-montanha.”
Mesmo com mensagem e imagens duríssimas, o filme consegue ter momentos altos de poesia e ótimo cinema.
Com personagens complexos e muito bem construídos, cenas muito bem fotografadas de cenários pós-apocalípticos, mostra um Brasil que pouca gente conhece.
A produção passou por locais reais e fez o “caminho da lama”, que desemboca, finalmente, em uma possibilidade de redenção que não é a fome insaciável da mineração. Pelo contrário.
“Acho que o grande papel da arte é tirar a gente do cotidiano. Convidar pra refletir. Eu espero muito que esse filme visite e revisite a cabeça de quem o assistiu. A gente tem que repensar a forma de exploração dos recursos naturais e escutar o que as vozes mais autorizadas — cientistas e os povos originários — estão dizendo pra gente há muito tempo: que essa forma de consumo e exploração, na melhor das hipóteses, vai dar nisso mesmo.”
Uma verdade inconveniente para alguns — e um alerta fundamental para todos — em forma de um grande filme.