O poeta Régis Bonvicino morreu no último sábado (5), aos 70 anos, durante uma viagem à Itália. Estava em Roma, em busca de lugares ligados a cineastas como Pasolini e Rossellini, que tanto admirava.
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Figura central da poesia brasileira desde os anos 1970, Bonvicino estreou com Bicho Papel (1975), seguido por Régis Hotel (1978). Sua escrita, urbana e cortante, se desenvolveu em obras como Sósia da Cópia (1983), Estado Crítico (2013) e A Nova Utopia (2020), que condensam uma visão dura do mundo e da linguagem.
Durante quatro décadas, dialogou com poetas como Paulo Leminski, Haroldo de Campos e poetas estrangeiros, sem nunca se prender a escolas. Sua escrita recusava a acomodação e buscava uma forma radical de lucidez, capaz de refletir sobre ruínas políticas, sociais e linguísticas.
Na década de 1990, Bonvicino ampliou seu diálogo com a poesia internacional. Publicou livros nos Estados Unidos, México, China, Espanha e Uruguai. Ainda assim, manteve seu foco na cena brasileira. Editor e ensaísta, acreditava no embate como força crítica. Lia, discutia, criticava e criava.
Na reta final de sua vida, voltou-se aos horrores contemporâneos — da Cracolândia a Gaza, da Ucrânia ao Irã — como imagens simbólicas de um mundo em colapso. A inquietação com o presente permeia seu último livro publicado, A Nova Utopia, e o poema inédito “Do que se trata”, escrito semanas antes da viagem fatal.
Bonvicino caiu na esquina do hotel, foi internado e, após dias em coma, faleceu ao lado da esposa, Darly Menconi. Morreu como viveu: atento, rebelde e em trânsito entre o mundo da poesia e o mundo real, que nunca separou.
Os poemas abaixo pertencem ao libreto Deus devolver o revólver, lançado em 2020:
Perspectiva
Muro baixo do cemitério
um galho da tipuana atravessa o arame farpado,
túmulos à vista, altos
duas cruzes de mármore
do lado oposto da rua
um cara estirado na calçada
debaixo das grades da janela do térreo
o motorista dá a partida
um casal: o marido empurra o carrinho do bebê
pessoas entram no edifício de tijolos à vista
na pequena casa geminada: consertos rápidos,
costureira na máquina
um gavião pousa numa antena
o cara acorda
olha para as grades, mija na parede,
mais uma loja fecha
a de aluguel de fantasias,
roupas para teatro e cinema
um mendigo se apaga nessas linhas
outro reaparece na cena
*
Lápide
Os soluços longos dos violinos do outono
aqui Rimbaud
aquele otário
te enrabou por uns trocados
*
Áudio
O sol da manhã bate em sua cara
deitada no chão
rente à mureta do parque
fios de cabelo branco escapam da tiara
cabeça sobre a bolsa
em frente à torre do relógio da estação
hibiscos vermelhos:
renques ao longo das grades
mão sobre o rosto
talvez ela tenha chegado no último trem da noite
talvez ela não esteja dormindo
talvez ela esteja sem clientes
vestido longo cinza
sapatos baixos, pele seca dos pés
talvez ela esteja a caminho do emprego
talvez ela vá pegar o metrô
a polícia aqui não mata todos os dias
ao fundo palmeiras em linha
mendigo negro, cabeça baixa,
de novo, sentado na guia
um ambulante vende água
talvez ela tenha escrito os versos:
“desatenta, fui castigada,
passei a vida ao largo”.
talvez ela tenha feito algum dinheiro
talvez ela seja figurante de um filme
talvez ela seja um cartaz perdido
a luz, rasante, incide sobre as rugas de seu rosto
a mandíbula de uma arara
um gavião pousa no topo de um cedro
mais alto que os prédios
talvez ela seja um acará ou uma carpa
espelhos d’água
uma andorinha, fosforescente, sobrevoa a grade
talvez ela não seja mais que um efeito de arte
talvez ela não passe de um close-up