Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
No final dos anos 2010, o trombonista David Santos notou que estava a cada dia mais difícil ler as partituras das peças nos ensaios da Orquestra Sinfônica do Paraná (OSP). Nascido em Salvador, David ingressou na OSP em concurso no qual era o mais jovem concorrente, em 2018.
A chegada em Curitiba, porém, não tinha sido fácil. Além do choque térmico, da Bahia ao frio curitibano, naquele tempo ele havia terminado um noivado, seus pais se separaram e sua avó querida faleceu. Uma bomba de emoções que, ao detonar, espalhou fragmentos que atingiram seu corpo todo.
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Aos poucos, ele descobriu que sofria de ceratocone, uma enfermidade na estrutura da córnea que faz com que ela se projete para a frente, formando uma saliência em forma de cone, que pode levar ao comprometimento total da visão.
Os aspectos emocionais aceleraram o desenvolvimento da doença e o músico chegou a ter 12 graus de miopia no olho esquerdo. Com a visão prejudicada e a expectativa apavorante da cegueira, David passou a se apoiar em seu sentido mais aguçado – a audição – e no instrumento que é seu grande parceiro de vida.
Musicarium
Como mal conseguia ler as pautas, precisava decorar tudo que iria tocar. Um esforço obstinado que impressionava os colegas.
“Era um desafio poder decorar. Tem um compositor austríaco chamado Gustav Mahler que é muito complexo. A gente teve que tocar a Nona Sinfonia dele. Ele fez dez. Então a Nona era o final da vida dele. O máximo de coisas que ele acumulou…”, disse David.
“Eu falei assim: cara, se eu conseguir decorar isso vai ser absurdo. Então eu ia me desafiando. E deu certo. A música com certeza fez eu não ficar lamentando. Para mim era um combustível a mais poder me desafiar.”
Foram quatro anos – tempo de um mandato presidencial – vivendo um dia mais escuro que o outro e, mais uma vez em sua vida, quem o salvou foi a música. Durante um ensaio do projeto Musicarium, onde havia começado a dar aulas para crianças, o maestro Sérgio Ogawa, responsável pelo projeto, que o convidou a reger a orquestra de jovens talentos.
Ele respondeu, meio brincando, que “não conseguia enxergar a partitura.” Mas o maestro percebeu que a coisa era séria, e ofereceu ajuda. Dois meses depois, David passou por uma cirurgia nos olhos, realizada graças ao apoio de Sérgio.
Com a visão restaurada e com um sentimento de gratidão, ele hoje se dedica às aulas do projeto como uma missão de vida: devolver à sociedade tudo aquilo que recebeu da música.
Com sede em Joinville (SC), o Musicarium – Academia Filarmônica Brasileira é um centro de formação musical de excelência que busca “transformar vidas” por meio da educação musical de alto nível.
Inspirado em academias europeias e asiáticas, o projeto oferece ensino rigoroso de instrumentos orquestrais para jovens talentos, a maior parte deles de escola pública, de todo o Brasil, aliando técnica, disciplina e sensibilidade artística.
O objetivo do Musicarum é se tornar uma Orquestra Filarmônica Internacional em 2030. Em 2025, o projeto vai realizar sua primeira turnê nacional, passando pelas cidades de Curitiba, Joinville e São Paulo. Os concertos terão cerca de 70 músicos no palco — entre alunos e professores da academia, além de convidados do Brasil e do exterior.
Os concertos acontecem no Teatro Coree Ernesto Heinzelmann, em Joinville (dia 24); no Clube Curitibano – Sede Concórdia, em Curitiba (dia 29); e no Auditório do MASP, em São Paulo (dia 31). Todas as apresentações começam às 19h e são destinadas a convidados.
Mais que uma temporada de apresentações, a turnê representa um encontro entre gerações e histórias do projeto, e será um momento único para David.
Além dos integrantes do Musicarium, participam alunos de outros projetos sociais, que terão a oportunidade de vivenciar uma experiência musical de alto nível ao lado de profissionais renomados.
“Vai ser transformador para a vida deles, e para o nível que a orquestra pode alcançar. Porque se expor a esse tipo de situação é muito importante para que a evolução seja cada vez mais exponencial. Poder apresentar ao resto do Brasil o que está sendo feito em Joinville é algo realmente extraordinário. A forma como as coisas estão sendo feitas lá deve servir de modelo, não só para a música, mas para tudo.”
A atuação no projeto Musicarium empolga David porque tem muitos pontos de contato com sua própria história de vida e de formação musical.
Em 2014, David Santos foi um dos responsáveis por representar o Brasil ao lado da Youth International Orchestra, na sede da ONU em Nova Iorque. Quando se viu soprando seu instrumento no prédio projetado por Niemeyer e palco das decisões mais importantes do mundo, o soteropolitano de origem humilde viu que tinha vencido todas as probabilidades que estavam contra ele.
Uma história que começou na igreja do humilde bairro soteropolitano onde nasceu. Para protegê-lo dos perigos da região, sua mãe o levou para cantar no coral, e David se apaixonou pela música. Encontrou sua própria voz — e um motivo para sonhar que tinha forma e nome: NEOJIBA, o Núcleo Estadual de Orquestras Infantis e Juvenis da Bahia.
Um trombone que ri e chora
Após assistir a uma apresentação do grupo, fascinado, viu que tinha encontrado seu lugar. Pouco tempo depois, tentou a sorte e se inscreveu no concurso para integrar o grupo. O problema é que o único instrumento com vaga disponível era o trombone, sobre o qual ainda não tinha domínio. Mas como já estava escrito para ser ele o instrumento, logo acharam uma simbiose que mostra que um nasceu para o outro.
Nas mãos de David, o trombone ganha vida. Chora, ri, sonha. Em sua interpretação, é mais que instrumento, é extensão da alma. Graças ao NEOJIBA, este encontro e muitos outros encontros aconteceram.
Com a Orquestra Juvenil da Bahia, grupo principal do projeto, ele se apresenta em turnês pela Europa e pelos Estados Unidos — e ele conheceu o mundo. Durante as viagens, pôde conhecer outras culturas e lugares que mostraram que transformar a própria história era possível.
“Existem outras realidades. Você pode buscar e implementar essas questões diferentes dentro da sua própria. Então, na hora que eu comecei a viajar bastante, eu comecei a não ser tolerante com muita coisa que eu achava errada e que poderia ser melhor. Isso mudou minha concepção para muita coisa.”
David decidiu viver da música e à música. No NEOJIBA, fez amigos para a vida inteira. Alguns seguem carreira fora do país, em lugares como Itália, França e Suíça. Assim como ele, tiveram suas vidas transformadas pela arte e por um projeto social.
Arquitetura musical
Na Itália, ele conheceu e estudou com o também trombonista Andrea Bandini, a quem chama de “segundo pai” e que o incentivou a ir além das partituras e estudar arquitetura, história e sociologia, porque a música, para ele, é mais que som: é construção social.
“O professor Bandini me fez estudar arquitetura, me fez estudar um pouco de literatura, estudar as pinturas das épocas. Porque eu tinha que entender o que é que estava sendo feito artisticamente naquela época. E aí muda completamente o modo como se interpreta.”
O carinho mútuo entre mestre e aluno foi outra lição. Como estudante, David é tenaz. No tempo livre, decora melodias de maneira incansável, treina passagens e prepara repertórios, tudo para conseguir alcançar os palcos que sempre sonhou em estar.
Como professor, é generoso. Vai além da sala de aula, acompanha os alunos de perto, ouve suas dores e incentiva seus sonhos. Ao longo de mais de cinco anos no projeto, David já ajudou jovens a saírem do tráfico e encontrarem caminhos na música. Porque ele sabe, mais do que ninguém, o que uma oportunidade pode fazer.
“Para mim o que mais me toca é poder ganhar alguém do tráfico e trazer alguém para a música. A gente conseguiu tirar a droga da mão de alunos e botar o trombone. Isso aí não tem preço que pague.”
David Santos, até agora, viveu muitas vidas em uma só.
- A criança humilde que cantava no coral da igreja.
- O jovem sonhador do NEOJIBA.
- O garoto que, ainda tão novo, chegou aos maiores palcos do mundo.
- O trombonista da Orquestra Sinfônica do Paraná.
- O professor que busca transformar vidas no Musicarium.
- E o homem que superou a cegueira.
Tudo por causa da música. Ela que, como poesia, não escolhe o ombro em que vai pousar. Quando chega, é daquelas coisas incontornáveis. E deixam a vida extraordinária como um solo de trombone.
Concertos Musicarium – Turnê Nacional 2025
Onde:
• Joinville – Teatro Coree Ernesto Heinzelmann (24 de julho)
• Curitiba – Clube Curitibano – Sede Concórdia (29 de julho)
• São Paulo – Auditório do MASP (31 de julho)
Quando: Sempre às 19h
Quanto: Entrada gratuita, com acesso exclusivo para convidados