Do Jornal da USP 

Com a morte de Jean-Claude Bernardet, ocorrida no dia 12 passado, aos 88 anos, vítima de um AVC, o Brasil perde um crítico no sentido amplo da expressão. Pode-se dizer que sua observação aguda não se restringiu ao cinema, mas abarcou sua própria existência, no tempo e no espaço em que lhe foi concedido viver.

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Crítico de cinema, professor emérito da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, roteirista, diretor e ator, Jean-Claude Georges René Bernardet nasceu na Bélgica em 1936, passou a infância na França e chegou ao Brasil aos 13 anos.

O cineclubismo o levou para a crítica, e a vontade de dialogar com os realizadores brasileiros modelou sua opção pela análise dos filmes nacionais. Como disse em entrevista para o Jornal da USP em 2017 (disponível neste link), a percepção de que suas avaliações eram bem-vindas e poderiam contribuir com a sociedade foi definitiva para sua opção pelo cinema.

Em nota sobre a morte do professor, a diretoria da ECA destacou que Bernardet é “figura fundamental para a compreensão do cinema brasileiro” (leia a íntegra da nota neste link).

Jean-Claude Bernadet deixou livro inédito. Foto: Jean-Claude Bernardet/Divulgação

Na juventude, Bernardet cultivou esperanças de voltar para a França. Vivia em São Paulo, em meio à colônia francesa, estudando no Liceu Pasteur. Quando as perspectivas econômicas familiares se estreitaram e o retorno se tornou impossível, em 1956, restou-lhe o Brasil. Como trabalho, a Livraria Francesa e depois a Cinemateca Brasileira.

Foi no cineclube do Centro Dom Vital que arriscou as primeiras críticas e conheceu Paulo Emilio Sales Gomes. A amizade traria o convite para escrever no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Receberia a demissão da cinemateca com o golpe militar de 1964, que ainda o tirou do jornal Última Hora. Seria também o ano em que se naturalizaria brasileiro.

Jamais abandonou as telas, contudo. O livro Brasil em Tempo de Cinema, publicado em 1967, uma de suas principais obras, disseca o Cinema Novo, fazendo a crítica da representação burguesa operada nas telas pelos cineastas desse movimento. Bernardet feria o ego dos realizadores, dizendo que não eram os revolucionários que acreditavam ser. Ia na contramão dos aplausos.

Em 1967, começou a dar aulas na jovem ECA, após integrar o núcleo de professores fundadores da Universidade de Brasília (UnB). Mas a roda viva da ditadura militar, agora materializada no Ato Institucional Número 5 (AI-5), de 1968, iria novamente passar por cima dele. A aposentadoria compulsória o colocaria para fora da USP até 1980. Aproveitou o hiato colaborando com a imprensa alternativa, escrevendo para periódicos como Opinião e Movimento e assinando seus primeiros roteiros para cinema.

Já reintegrado à Universidade, publicaria em 1985 outro livro influente, Cineastas e Imagens do Povo, em que aborda o documentário brasileiro. Em 1990, vai para a ficção com o livro Aquele Rapaz e em 1996 elabora sua convivência com o HIV em A Doença, Uma Experiência.

Em 2004 Bernardet se aposenta da ECA, protagoniza o documentário Crítica em Movimento (2004) e envereda pelos caminhos da atuação. Dentre as produções em que aparece estão Filmefobia (2008), Fome (2015) e A Destruição de Bernardet (2016).

No ano passado, uma retrospectiva inédita de sua carreira no cinema foi apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. Nas telas, o avanço da idade e as fragilidades do corpo se tornam imagem de força. Sua própria presença subversiva se torna a crítica dos padrões cinematográficos.

Bernardet vivia nos últimos tempos às voltas com médicos e medicamentos. Além do HIV, sofria com a perda da visão por degeneração ocular e enfrentava um câncer reincidente na próstata. Não fazia quimioterapia e era crítico da indústria da saúde. Dizia que ela buscava lucrar prolongando vidas sem qualidade. Deixou um livro por publicar, Viver o Medo: Uma Novela Pornô-Gourmet, coautoria com Sabina Anzuategui, como anunciou a Companhia das Letras em suas redes sociais.

Para o diretor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA Rubens Rewald, Jean-Claude Bernardet foi “o mais socrático dos nossos intelectuais”. Dentre outros trabalhos, Rewald codirigiu com Bernardet em 2020 #eagoraoque (2020), em que ficção e documentário se misturam para discutir a ação política. “Ele estava sempre aberto e disposto ao diálogo, à construção colaborativa, às parcerias criativas.

E sempre desconfiando do consenso. Achava o conflito de ideias a melhor estratégia para a evolução da arte e do pensamento”, lembra o professor.

Rewald recorda a paixão e exigência com que Bernardet se entregava aos seus trabalhos. “Seus parceiros criativos pela vida foram inúmeros, como Luiz Sérgio Person, Teixeira Coelho, Tata Amaral, Roberto Moreira, Kiko Goifman, Cristiano Burlan, Fábio Rogério e dezenas de outros”, conta o professor. “Claro, fiz parte também dessa galeria e posso garantir que ninguém conjugava tão bem o rigor com o amor. A busca da palavra exata, da ideia precisa, do conceito apropriado. Mesmo que se perdessem meses nessa busca. Não importa. Para ele, estar em constante estado de criação e reflexão era viver a vida. Em sua plenitude.”

Outro que recorda o colega é o também professor da ECA Carlos Augusto Calil. “Jean-Claude Bernardet foi um notável professor de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP. Dotado de múltiplos talentos, foi professor, ensaísta, historiador, roteirista, cineasta, escritor de autoficção, performer e inventor de jogos.”

Ao relembrar o colega, Calil faz questão de salientar a importância de Sales Gomes no início da trajetória de Bernardet. “Muito jovem, ele foi arregimentado pelo crítico Paulo Emilio Sales Gomes para compor a equipe que criou a Cinemateca Brasileira, ao mesmo tempo em que lhe oferecia a oportunidade de escrever crítica de cinema no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo”, conta o professor.

“Convidado a criar o curso de cinema da UnB, Paulo Emilio levou Bernardet como assistente. Frustrada a experiência por motivos políticos, voltaram ambos a São Paulo, onde participaram da criação do curso de Cinema da então Escola de Comunicações Culturais (ECC), a atual ECA, da qual se tornaram professores.”

Ao relembrar o colega, Calil faz questão de salientar a importância de Sales Gomes no início da trajetória de Bernardet.

“Muito jovem, ele foi arregimentado pelo crítico Paulo Emilio Sales Gomes para compor a equipe que criou a Cinemateca Brasileira, ao mesmo tempo em que lhe oferecia a oportunidade de escrever crítica de cinema no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo”, conta o professor. “Convidado a criar o curso de cinema da UnB, Paulo Emilio levou Bernardet como assistente. Frustrada a experiência por motivos políticos, voltaram ambos a São Paulo, onde participaram da criação do curso de Cinema da então Escola de Comunicações Culturais (ECC), a atual ECA, da qual se tornaram professores.”

Calil também frisa a postura subversiva de Bernardet, manifesta em múltiplas frentes. “Bernardet se destacou pela originalidade das ideias, pela coragem com a qual navegava contra a corrente dominante, pelo visceral anticonformismo. Contraiu Aids e, resistindo bravamente a ela, fez da doença o tema de um contundente libelo pela sexualidade livre. No final da vida teve câncer, mas se recusou ao tratamento denunciando a mercantilização da medicina que sequestra a morte natural”, afirma o professor.

Assista no link abaixo ao documentário Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, produzido em 2018 pela TV USP, que tem a participação do professor Jean-Claude Bernardet:

Artigo de Bernardet publicado no Jornal da USP em 30 de março de 1992: para o professor, a crise do cinema nacional era causada pelo distanciamento entre cineastas e público

Reflexões de um cinema em crise

Em 1992, Bernardet contribuiu para a edição de 30 de março do Jornal da USP com o artigo No Mundo Inteiro o Cinema Está-se Transformando. Trata-se de uma análise da situação do cinema brasileiro no contexto da extinção da Embrafilme, em 1990, durante o governo Collor.

Artigo de Bernardet publicado no Jornal da USP em 30 de março de 1992: para o professor, a crise do cinema nacional era causada pelo distanciamento entre cineastas e público

No artigo, o professor reconhecia a necessidade do financiamento público para produção nacional e apontava caminhos alternativos, como a presença dos grupos televisivos no cinema, algo que não existia na época. Mas, além disso, Bernardet afirmava que as reservas de mercado praticadas pelo poder público eram também um fator para distanciar realizadores e público, agravando a crise pela qual o cinema passava no início dos anos 1990.

“No meu entender, essa situação impediu que os cineastas ou parte deles se tornassem uma força social na sociedade brasileira. ‘Força social’ não remete aqui à temática dos filmes, mas à intensidade na relação com um público ou públicos”, escreveu Bernardet. “Um dos obstáculos da produção cinematográfica brasileira é que hoje, atrás dos cineastas, não há nada nem ninguém, estão isolados.”

Para o crítico, essa situação fez com que os realizadores se preocupassem muito com suas próprias produções, em um corporativismo responsável por deixar a relação com a sociedade em segundo plano. “A comunicação com o público acabou se colocando antes a um nível de desejo, de vontade ou mesmo de autojustificação, mas sem muita repercussão a nível da produção, dos temas, das formas de linguagem”, analisa Bernardet. “Pode-se dizer que o cineasta considerava ter vencido a parada desde que tinha conseguido produzir seu filme e tinha chegado à primeira cópia.”

Esse modelo, para o professor, havia alcançado seu auge nos anos 1970 e 1980, e sua crise ajudava a explicar o momento pelo qual o cinema nacional vivia. Diante disso, Bernardet acreditava que não bastava a volta de reservas de mercado ou financiamento público para tirar a produção brasileira da crise. Era preciso uma transformação da mentalidade dos próprios cineastas e das funções sociais dos artistas e de suas formas de produção.

Como sempre, uma análise que mostrava uma realidade muito mais complexa do se gostaria à primeira vista.

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