“Chega de ser Marília Gabriela”, diz a própria Marília em uma de suas primeiras falas no palco da peça que divide com o filho Theodoro Cochrane. Ela conclui que, aos 77 anos, e há pelo menos cinquenta sendo quem é na frente do Brasil, pode se aposentar de si mesma. Mas o teatro, de alguma forma, a está fazendo adiar.
Assisti à sessão da noite de sábado (26), que a princípio seria a penúltima da temporada. Mas o sucesso de público obrigou a estendê-la e “A Última Entrevista de Marília Gabriela” fica em cartaz até o dia 31 de agosto no Teatro Porto, em São Paulo.
Ótimo teatro, aliás, tinindo de novo na fronteira do neo-boêmio bairro de Santa Cecília com os Campos Elísios, que hoje são uma espécie de buffer zone da móvel Cracolândia paulistana.
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Escrito por Michelle Ferreira e dirigido por Bruno Guida, o prospecto prometia passar em revista os momentos da vida da entrevistadora, entre êxitos e fracassos da carreira e alegrias e tristezas da vida pessoal.
No começo parece que será isso mesmo: a maior entrevistadora do país em cena para uma última dança, e, dessa vez, será ela a entrevistada — por seu filho caçula.
Assim, a coisa começa. Em performance apaixonada, Theodoro põe a mãe na parede, como ela fazia melhor que ninguém com seus entrevistados, sobre babados e fracassos, na fórmula — sobre a qual ele brinca o tempo inteiro — do teatro contemporâneo: sem a “quarta parede”, trazendo o processo de criação da peça para a boca de cena.
Num dado momento, mãe e filho trocam de lado e trazem uma inesperada lavagem de roupa suja, de cariz psicanalítico, enfrentando traumas e mal-entendidos e aos gritos, como fazem as pessoas que se amam.
Ele a acusa de não o ter defendido à altura dos bullying e assédios que sofreu na infância e adolescência por ser — além de gay e desajustado — o filho da Marília Gabriela. Ela responde que deu todas as condições materiais e todo o amor que pôde ao filho, e ele fez suas próprias escolhas.
Neste ponto, dramaturgicamente instigante, o texto fala de temas como envelhecer, depressão, feminismo, conflitos geracionais, etarismo, fronteira entre o público e o privado e homofobia, com uma honestidade brutal que, pelo jeito, é de família.
Marília e Theodoro sabem quem são e falam do lugar que ocupam, na nata da elite brasileira — “Um dia perfeito para mim é assistindo peças de teatro em Nova Iorque”, diz ela. Theodoro tem crises de consciência por, perto dos 50, não ter conseguido fazer algo importante na cultura brasileira, quando 99% das pessoas com essa idade, se estiverem vivas, já estão no lucro.
De qualquer jeito, eles fazem com muito humor autodepreciativo e reflexivo que preparar a plateia para o ponto alto da noite quando Marília convida alguém da plateia para uma entrevista “bate-pronto”, “ping-pong”, “jogo rápido” que era a sua especialidade, fez sua fama e como terminava suas entrevistas.
Ali Marília deita e rola sendo quem ela sempre foi: a entrevistadora que mais presta atenção, que mais entra no jogo do entrevistado, que faz qualquer um — de anônimos a presidentes — viver uma última dança da mestra deste métier.
Marília termina respondendo à grande questão que os filhos querem saber das mães: qual é o sentido da vida?
E ainda que a resposta seja boa, ela soa mais verdadeira na cena final, quando os dois cantam juntos uma versão dançante de “Here Comes the Rain Again”, do Eurythmics, deixando claro que só podiam falar tudo aquilo que falaram, daquele jeito, pois é isso que quem se ama faz.