No jornalismo, há um axioma conhecido como Lei de Betteridge, que diz o seguinte: “Qualquer título que termina com um ponto de interrogação pode ser respondido com a palavra ‘não’.”

Apesar do livro de contos os ratos vão para o céu?, de Vitor Miranda, não se enquadrar nessa categoria menor da comunicação — ao contrário, é exemplo da melhor literatura atual em língua portuguesa  —, a resposta é válida.

O texto do autor, que é um dos pilares do autonomeado movimento neomarginal, compõe um inventário quase documental de várias infâncias disfuncionais, situadas em lugares habitados pela fauna albina, à margem das margens — lá onde o algoritmo, o mercado e os prêmios literários ainda não apitam tão alto.

Capa do livro ‘os ratos vão para o céu?’, de Vitor Miranda.

Em entrevista ao Fringe, Miranda fala sobre o livro, os ratos, a infância, o ritmo do rap e do rádio AM, e sobre o que ainda justifica escrever literatura num país que nunca aprendeu a ler de verdade.

 1 – O movimento Neomarginal tem muito da pulsão do movimento marginal dos anos 1970, mas os tempos são outros. Se o movimento anterior falava dos bares e esquinas, o Neomarginal escreve de onde?

Há um poema do mineiro Lucas Guimaraens que diz: “De perto todo mundo é pixel”. Mesmo na camada virtual, escrevemos das (es)quinas dos pixels. Costumo chamar essa matrix (diversas camadas que vivemos num mesmo tempo) de metrópole virtual. Escrevo desse lugar. Espaços de solidões profundas. O que te desafia ainda mais a tentar observar e compreender a complexidade humana existente em todas essas realidades.

O movimento Neomarginal nasce em outro contexto político. Não há mais ditadura no Brasil e nem precisa. A democracia evangélica está aí elegendo o Legislativo e Executivo, que indica ministros para o Judiciário. As inteligências artificiais e fake news influenciando a realidade, mas o personagem a ser sacrificado ainda é Jesus Cristo e a luta ainda é pelo poder. Só mudou a tecnologia. Toda literatura atual é distópica, pois já chegamos aqui: na catástrofe social.

2 – Você cunhou uma grande frase que deu nome do movimento atual: “Pra tudo há um novo, menos para o marginal”. O que queria dizer com isso?

Quando cunhei a frase, o contexto era o artista. Continua sendo. Minha luta é pelo artista independente e marginalizado. E claro, pela poesia.

Se formos pensar até nas estatísticas dos assassinados pela ditadura militar, quem entrou na conta foram pessoas conhecidas, da high society, filhos de gente importante, das capitais. Indígenas, ribeirinhos, periféricos, interioranos, esses não entraram nas estatísticas dos mortos políticos.

Mais de 90% dos artistas não se sentem incluídos no mercado artístico. Há uma “classe artística” que não nos representa. E sempre foi assim.

Há um Movimento Neomarginal organizado por alguns artistas, mas há um sentimento Neomarginal que é de artistas de todo Brasil. Neomarginal é o isolado, aquele que não se sente pertencido, que não se sente respeitado, que não se sente percebido. São aquelas pessoas que são chamadas de marginais geração após geração, enquanto vão surgindo “novidades”, como se não houvesse nada novo nas margens.

Colocar o “neo” é uma ironia com o mercado. Pois esse mercado que pretende mudar o status quo da sociedade é apenas reflexo de qualquer outro mercado existente na sociedade. E isso vem chamando a atenção para as obras de artistas que se sentem neomarginais. Nós queremos falar sobre nossos trabalhos.

3 – Na apresentação do livro, o escritor Xico Sá o posiciona numa tradição de literatura sobre ratos. Você sente dentro dela ou veio para rompê-la? O que os teus ratos têm que os outros não têm?

Quando escrevi os contos do livro, não estava pensando em romper ou manter a tradição. Fico muito feliz por ter uma apresentação do Xico Sá, um gênio da crônica que também tem um livro sobre a infância. Uma honra ele me colocar ao lado de grandes da literatura que também usaram o rato em seus textos.

Respondi a ele agradecendo e citando também “Perdoando Deus”, de Clarice Lispector, onde a narradora dela pisa num rato morto na orla da praia e esse fato dispara o fluxo de consciência.
Eu sou apenas mais um fazendo o jogo da literatura continuar. Acredito que em “Os ratos vão para o céu?” consegui jogar em alto nível para merecer os comentários de Xico.

O que meus ratos têm que os outros não têm? Sou eu e o jeito que vejo o mundo, o modo particular que penso a literatura. A ironia e a metáfora no título perguntam. Uma continuidade do livro de contos anterior “O que a gente não faz para vender um livro?”. A interrogação gera a reflexão: quem são os ratos? O que é o céu?

4 – Li o livro como um inventário de muitas infâncias de gerações diferentes. Porém, a linguagem e o ritmo tem mais contato com música das ruas dos dias atuais. Qual é a música que sai do teu livro?

Trabalho algumas gerações de infâncias. A de meus pais, que estão com sessenta e poucos; a sua, a minha, a atual, que já é criada pela tecnologia das big techs. Busquei também uma variedade geográfica: das periferias aos condomínios e também o quintal de terra onde se enterram bebês natimortos de uma zona rural interiorana.

Possivelmente, o ritmo musical de minha prosa tem uma ligação muito forte com a trilha sonora da minha infância no bairro do Jaguaré, periferia de São Paulo. A rima e o ritmo do rap, que sempre pensei como uma evolução da poesia concreta com a migração repentista dos trabalhadores nordestinos que povoaram a cidade de São Paulo.

Uma mistura também com as redes de comunicação. Meu avô, um migrante paraibano que construiu sua própria casa na Freguesia do Ó. Um homem que cheirava rapé e acompanhava os jogos de futebol do Corinthians pelo rádio, naquelas narrações alucinantes onde a gente fica tão confuso que gritamos gol junto ao narrador, mas nem percebemos que a bola já estava com o adversário.

Uma vez, li uma entrevista de Gilberto Gil e ele disse que a primeira grande referência musical era uma oficina próxima à sua casa da infância. Então a música está na rua, está nas obras dos artistas, está nas timelines, está na vida. E esses ruídos são formadores de um estilo literário. A literatura de cada escritor(a) é uma onda.

5 – Durante a a apresentação do livro [no Porão Loquax, no Wonka, em Curitiba], você disse que esse é seu livro mais radical. Por que exatamente ele não parece com tua produção anterior?

Eu não lembro se eu disse isso sobre “Os ratos…” ou sobre “A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty”, um romance experimental de 2019 que em breve terá segunda edição pela Barraco Editorial.
Escrito numa linguagem mais específica. Uma prosa sem pontuação, onde as palavras funcionam como ímãs que vão magnetizando sons semelhantes e formando imagens sonoras, sem perder uma ideia narrativa sobre um poeta que passa pela tortura de uma ditadura evangélica.

Lembro que quando Alice Ruiz leu, ela disse: “Não sei se é bom, mas é diferente.” Um elogio até mais interessante, pois fazer algo diferente na literatura nesse momento é quase um milagre.
Voltando aos “Ratos…”, creio que é uma evolução da minha prosa de contos. Um livro que incomoda e brinca com a contradição humana e com a culpa do que fizemos e os traumas que carregamos. Também faz rir, apesar do riso ser preocupante nas situações das narrativas.

Tem alguma semelhança com “O que a gente não faz para vender um livro?”, já citado aqui, mas ao suavizar a ironia e o sarcasmo, creio que envolve de uma maneira muito mais profunda o leitor. E a violência humana fica muito mais radical quando tratada com seriedade.

6 – Em tempos de TikTok, algoritmos e microvídeos, o que ainda justifica escrever literatura no Brasil, um país historicamente analfabeto? O que a literatura pode fazer que ninguém mais pode?

Em junho, um policial militar adquiriu “Os ratos vão para o céu?” na A Feira do Livro. Me enviou mensagens dizendo que estava lendo o livro para os colegas de trabalho e sentindo a mudança de humor neles. Voltou duas vezes à feira me procurando. Na segunda vez me encontrou e disse que “policiais não têm maturidade para ler o que escrevo”.

Faço fotos com todxs leitores segurando o livro e posto elas. Fiz com o policial também. Por causa dessa foto, curadores da FLIPEI me censuraram e me tiraram da programação oficial do evento. Os curadores não leram o livro.

Essa semana, o “Sempre um papo”, do mineiro Afonso Borges (o primeiro jornalista a ler o livro), lançou a campanha Palavra Justa, para doação de livros para bibliotecas de penitenciárias mineiras. Já enviei “Os ratos…” para cinco dessas penitenciárias e devo enviar mais exemplares para outras na semana que vem.

No Brasil, a leitura de livros ajuda pessoas a diminuírem suas penas. Então a leitura de livros tem uma profundidade existencial muito maior, pois a palavra é uma das potências maiores do convívio humano.

Uma palavra mal escolhida numa conversa pode destruir uma relação para sempre. Acaba com um negócio.
Ao mesmo tempo, a palavra muito bem escolhida e encaixada dentro de uma arquitetura narrativa pode simplesmente mudar a vida de um ser humano e fazer ele se encontrar.

O livro, de repente, salva a vida de alguém. Faz alguém se libertar.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

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