Houvesse um prêmio para a melhor “ideia musical”, ele teria que estar nas mãos da amiga que sugeriu que Amaro Freitas e Zé Manoel se unissem em um show conjunto com o repertório do Clube da Esquina, por ocasião dos 50 anos do antológico álbum em 2022.
Na noite desta última quarta-feira (30), durante a primeira sessão da temporada da dupla na CAIXA Cultural Curitiba, Amaro contou brevemente a história e disse que o nome dela é Manu (cadê você, Manu? O Brasil te deve essa).

Ainda que eu acredite que este encontro seria inevitável, pois algumas coisas precisam acontecer e o tempo, como a água, sabe achar os caminhos.
Quanto ao concerto, sublime é a melhor palavra do léxico para defini-lo – a mesma usada pelo mestre Mauro Ferreira quando o viu – pois é superlativamente belo.
Excelso da intenção ao resultado, este encontro de dois artistas brasileiros com tantas diferenças e semelhanças entre si. Pois ambos são pernambucanos, Zé de Petrolina, Amaro do Recife, negros e invulgares pianistas.

Usando uma palavra muitas vezes tomada em vão, Amaro é um gênio. Une a virtuose à fome de inovar. Domina totalmente seu instrumento e parece ser a pessoa que mais se diverte durante o show, mais do que a plateia, de cuja boca aberta escorre a baba elástica da admiração.
Às vezes parece que é Hermeto Paschoal fundido a Johnny Alf. Em outras, as experiências minimalistas de John Cage com as incendiárias de Jimmy Hendrix (aposto que um dia ele vai tacar fogo no piano).
Mas, no fundo, está mais para Jimmy Renda-se, no que há de mais “tomzeano” na grande mistureba da música brasileira em sua ironia exuberante e precisão performática e emocionada.
Amaro não toca de forma tradicional. Brinca com as cordas do piano, com sua caixa de reverberação, com os pedais. Técnica expandida para extrair sonoridades inimagináveis, sons industriais, da natureza. É um artista total, em pleno e ilimitado voo.

Já a voz de Zé Manoel é o vento, é a voz do tempo. Um diseuse que interpreta as canções fazendo com que todo mundo acredite no que ele fala.
Numa perspectiva de história da arte, ele se insere numa tradição de cantores brasileiros de voz contida, elegante, suave, macia, que surgiu em contraponto ao emocionalismo excessivo da música popular das décadas de 40 e 50.
Há estudos que mostram a relação deste jeito de cantar com manifestações estéticas dos anos 50, como a poesia concreta e a arquitetura. Uma espécie de “influência do cool jazz” na cadência do samba, que tira o melodramático das canções para que reste só o sentimento essencial de cada tema.

Zé Manoel é herdeiro disso, mas dá muitos passos à frente, interpretando os sons e sentidos do nosso tempo. Além de compor e tocar piano como poucos. No concerto, porém, é o lado cantor que sobressai, com Amaro armando a cama para sua voz de veludo.
Os arranjos respeitam as colocações das composições originais, mas as trazem para a órbita intuitiva de Zé, um planeta no tempo da delicadeza. Zé não tenta ser Milton, pois ninguém pode ser Milton, assim como ninguém consegue ser Zé. E, como ele próprio disse, o piano de Amaro abraça a interpretação do colega.
E o que falar do repertório? Na mais bem costurada eleição deste gênero, o Clube da Esquina foi eleito recentemente o melhor álbum nacional de todos os tempos.

Com o canto suave de Zé Manoel e o piano de Amaro Freitas, as canções vão para outro lugar:
- “Tudo o que você podia ser” (Lô Borges e Márcio Borges, 1972),
- “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972),
- “O trem azul” (Lô Borges e Ronaldo Bastos, 1972),
- “Nuvem cigana” (Lô Borges e Ronaldo Bastos, 1972),
- “Cravo e canela” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1971),
- “Dos cruces” (Carmelo Larrea, 1952),
- “Um girassol da cor de seu cabelo” (Lô Borges e Márcio Borges, 1972), “
- San Vicente” (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1972),
- “Clube da Esquina nº 2” (Milton Nascimento, Márcio Borges e Lô Borges, 1972),
- “Paisagem da janela” (Lô Borges e Fernando Brant, 1972),
- “Nada será como antes” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1971).
Um momento muito simbólico é “Clube da Esquina nº 2”, quando do piano tocado a quatro mãos com a opção elegante de executar a música sem letra, só nos vocalizes, com exceção do verso final: “E lá se vai mais um dia”.
Fora do repertório do Clube da Esquina, eles incluíram a canção “Olho D’água”, de Ronaldo Bastos e Paulo Jobim.
No bis, o samba “Me deixa em paz”(Monsueto Menezes e Aírton Amorim, 1952) – ressignificado por Zé Manoel como um canto contra relacionamentos abusivos.

Um encontro que era para durar dois shows, e já passou dos cem, rodando o Brasil, virou um acontecimento cultural da década. Está em Curitiba até o fim de semana.
Que siga rodando o mundo, pois a música de Amaro Freitas e Zé Manoel reflete o melhor do Brasil – e estamos precisando lembrar de quando éramos reis.