Numa das mais célebres parcerias da música popular brasileira, Michael Sullivan e Paulo Massadas entenderam como poucos o Brasil dos anos 1980. Eram cronistas de um país sensível, radiofônico, romântico até a medula. Enquanto as guitarras da geração do BRock apontavam o dedo para o mundo, Sullivan afinava seu violão com a dor do abandono, o amor não correspondido, a festa, a fé e a infância. Agora, prestes a completar 74 anos, o compositor — nome artístico do pernambucano Ivanilton de Souza Lima — está mais interessado em deixar algo nas pessoas do que para elas.
Essa virada de chave é o motor do projeto Composição Plural, idealizado por ele e realizado pela União Brasileira de Compositores (UBC). Depois de uma primeira edição no Rio, o programa chega ao Nordeste em agosto com oficinas gratuitas em Fortaleza (19 e 20), Recife (21 e 22) e Salvador (25 e 26). O foco: formação e estímulo à criação musical para compositores iniciantes ou em desenvolvimento. A proposta: oferecer o que Sullivan nunca teve — acolhimento e método — a quem se aventura na escrita de canções num país que nem sempre valoriza a arte como trabalho.
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Com Sullivan como mentor e símbolo, o projeto percorre teatros públicos cedidos por instituições culturais locais: o Teatro B. de Paiva, no Porto Dragão em Fortaleza; o Hermilo Borba, no Recife; e o Cineteatro 2 de Julho, em Salvador. A estrutura é simples: palestra, espaço para perguntas, oficina prática e troca coletiva. A intenção, no entanto, é grandiosa — como a trajetória do homem por trás da empreitada.
De Recife para o mundo
Nascido no Recife, Sullivan começou sua carreira aos 14 anos em programas de calouros. Era a era dos festivais, das trilhas de novela e da utopia do disco de vinil. Ainda adolescente, migrou para o Rio de Janeiro e mergulhou no efervescente mundo musical dos anos 1970, onde cruzou caminhos com nomes como Hyldon, Cassiano e Tim Maia — este último, além de parceiro, foi seu mentor informal no violão e na vida.
Foi com o letrista carioca Paulo Massadas que Sullivan encontrou a química definitiva. Juntos, emplacaram sucessos inquestionáveis. “Me Dê Motivo”, com Tim Maia, “Um Dia de Domingo”, com Gal Costa, “Amor Perfeito”, com Roberto Carlos. E, claro, hits infantis que marcaram gerações como “Lua de Cristal” e “Uni Duni Tê”, eternizados por Xuxa e o Trem da Alegria. Ao todo, mais de duas mil músicas gravadas e números que o colocam no Guinness Book e no Latin Songwriters Hall of Fame.
Mas Sullivan, diferentemente do que o show business costuma fazer com seus astros, não se aposentou nem se retirou para o Olimpo dos medalhões. Pelo contrário: reapareceu mais humilde, mais didático, mais político — talvez mais artista do que nunca.
O método Sullivan
Há um detalhe sobre Sullivan que raramente se destaca em reportagens: ele sempre soube trabalhar em equipe. Compositor, mas também produtor, arranjador, mentor. Sua relação com Massadas era quase de simbiose. Com Xuxa, assumiu o universo da infância como estética. Com Roupa Nova, fez da balada pop um gênero nacional. Esse traço coletivo agora se transforma em pedagogia.
“Legado não é o que você dá para as pessoas, é o que você deixa nas pessoas”, repete o artista, com a precisão de um refrão que gruda. Essa é a tônica de sua fala nos encontros da Composição Plural. Mais do que ensinar rimas e cifras, Sullivan ensina escuta. Incentiva a humildade criativa. Convida os participantes a pensarem nas canções como artesanato emocional e mercadoria afetiva — porque sim, compor é também profissão.
O diretor-executivo da UBC, Marcelo Castello Branco, define o projeto como “uma das missões pilares da instituição”. A entidade, que representa mais de 70 mil associados, entre autores, intérpretes e editoras, investe há anos em programas de formação e distribuição justa de direitos autorais. Com Sullivan, ganha algo além dos números: ganha história viva.
Ensinar é resistir
No Brasil de 2025, compor é um gesto de resistência. A indústria fonográfica mudou, o streaming achatou os créditos autorais, os festivais são escassos e a pressão estética — muitas vezes enviesada por algoritmos — empurra novos artistas para a repetição. É nesse contexto que a Composição Plural se torna necessária. Ela descentraliza o saber, leva-o a regiões historicamente menos favorecidas pelo eixo Rio-São Paulo e fortalece uma rede que acredita na canção como forma de pensamento.
Nas oficinas, participantes compõem em grupo, trocam vivências, testam harmonias, rascunham refrões. E, entre uma pergunta e outra, ouvem histórias de bastidor — como o dia em que Tim Maia gravou “Leva” porque a música o emocionou a ponto de ligar chorando para Sullivan. Ou a vez em que Gal Costa pediu “uma igualzinha àquela do Tim” e inspirou “Um Dia de Domingo”. São momentos em que a canção, esse ente quase mágico, se revela também produto de suor, teimosia e escuta sensível.
A hora de recomeçar
Diante de tantos sucessos, é curiosa a escolha de Sullivan em voltar ao começo — ensinar a compor como se fosse a primeira vez. Mas talvez essa seja justamente a lição: a música só sobrevive se for partilhada. O hit, uma vez lançado, é de todo mundo. O que fica mesmo é o gesto de criação, o instante anterior, a sala com o violão no colo e o silêncio que antecede a melodia.
Em tempos de ruído e urgência, Sullivan parece dizer: componha. Mas componha com calma. Componha com os outros. Componha como quem deixa algo em alguém.