Entre raios de sol de fim de tarde que iluminavam a mata à beira de um pequeno riacho, o povo Awá Guajá celebrou o lançamento da coletânea de cantos que registra sua cultura, modo de vida, relação com a natureza e ancestralidade. A coletânea Karawa Janaha nasceu a partir de um desejo dos povos que vivem nas Terras Indígenas Caru e Awá.

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O material valoriza o patrimônio cultural dos Awá Guajá e seus saberes, preservados com resistência frente às ameaças, como o desmatamento, invasão de madeireiros e queimadas. Os cantos são como mantras que trazem a relação com uma infinidade de seres espirituais, acontecimentos do cotidiano e diálogos entre humanos e ancestrais.

A produção reúne registros sonoros e dois volumes escritos com as canções entoadas na língua dos Karawara – seres espirituais e ancestrais do povo Awá Guajá que se comunicam com o mundo material por meio do canto. Esses cantos não são na língua Awá Guajá, mas sim em uma “outra” língua, espiritual, expressando a estreita relação dos indígenas com o mundo invisível.

“A gente organiza os cantos dentro da floresta para mostrar nosso conhecimento, nossa realidade. Pra todo mundo conhecer a gente. A música é pra caçar porcão, pombo-do-mato, tirar mel. A gente sente a força do espírito Karawara. A música traz o espírito da natureza pra fortalecer nossa terra”, relata Amiri Awá Guajá, da Terra Indígena Caru.

O projeto foi fruto de um esforço coletivo, com registros realizados nas aldeias Awá, Cachoeira, Juriti e Tiracambu. A obra foi coordenada por uma equipe interdisciplinar formada por especialistas: a linguista Marina Magalhães, da Universidade de Brasília (UnB), o antropólogo Uirá Garcia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e o etnomusicólogo Yasuhiro Morinaga.

A execução se dá a partir do Plano Básico Ambiental Componente Indígena da Expansão da Estrada de Ferro Carajás, de responsabilidade da empresa Vale S.A., e implementado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), no âmbito do Subprograma Fortalecimento Cultural.

“Essas publicações irão para as escolas Awá. Eles têm muito orgulho da própria cultura e querem mostrar para os não indígenas. É um povo de contato recente que enfrenta muitos desafios. Nos cantos, eles expressam toda a sua cosmologia e sabedoria de vida”, afirma a coordenadora do Subprograma de Fortalecimento Institucional do ISPN, Suely Dias Cardoso.

A coletânea Karawa Janaha: o canto dos Karawara é um marco na preservação e valorização da cultura Awá Guajá, conectando tradição, espiritualidade e resistência por meio da música.

Os Awá Guajá cantam em diversas situações do cotidiano: antes do amanhecer, para saudar o sol e o novo dia; à noite, para ninar as crianças; durante as caçadas e na interação com os espíritos da floresta; em momentos de tristeza ou alegria.

Todos os cantos são ensinados pelos Karawara e revelam aspectos dos hábitos alimentares, técnicas de caça e formas de proteger a floresta e sua própria existência. Os rituais são realizados principalmente no verão, como uma celebração dedicada à floresta. Na cultura Awá Guajá, o ritual permite que os espíritos deixem na terra o calor do céu.

“A nossa cantoria é muito importante para nós, pois mostra nosso ritual, como preservamos nossa terra e fortalecemos nossa cultura. É a nossa resistência como povo”, diz o jovem Kwarahyaxa Awá Guajá, da Aldeia Tiracambu, Terra Indígena Caru.

O ritual que marcou o lançamento da coletânea de cantos na Terra Indígena Caru aconteceu em um pedaço de mata limpo com todo o cuidado para receber parentes e não indígenas. No centro, foi construída uma tocaia (abrigo com abertura no topo), que permite a conexão com os seres celestiais.

Os cantos, sem uso de instrumentos musicais, exigem força vocal e delicados movimentos corporais de dança. Os adornos com cocares e braceletes também fazem parte da ritualística. Ao adentrar a tocaia, o espírito do Awá segue para o céu (oho iwá pe), onde se encontra com seus ancestrais. Nesse canal aberto entre a terra e o céu, os Karawara descem e vestem o corpo do viajante.

Tocaia construída para ligação com os Karawara, seres celestiais. Foto: Ariel Rocha/Acervo ISPN

No ritual, as mulheres indígenas desempenham um papel importante. Ao entoarem seus cantos, elas servem de guia para que o espírito humano retorne à terra. “Enquanto estão no céu, eles viajam longas distâncias, conhecendo aldeias de outros seres celestiais, outros espíritos. A voz das esposas, irmãs e filhas serve para guiá-los de volta”, explica o antropólogo Uirá Garcia.

Os Karawara são espíritos que vivem nas dimensões celestiais e são considerados os donos dos animais, insetos e pássaros. São caçadores perfeitos e xamãs celestiais. Para a cultura Awá, eles representam o destino de todo ser humano (awatea) após a morte — espíritos ancestrais, já moradores do céu.

O registro dos cantos (janaha) também representa o florescer de um ativismo político, a resistência de um povo guardião dos bens naturais e a preocupação em manter vivas as tradições. É uma reafirmação da consciência sobre sua própria cultura e da importância de preservá-la.

“Essa iniciativa que está sendo apresentada aqui procura valorizar a cultura indígena, nesse caso, dos povos Awá Guajá. São eles que protegem o nosso meio ambiente. Historicamente e culturalmente, os lugares mais bem conservados são os habitados pelos indígenas”, afirma o coordenador executivo do ISPN, Fábio Vaz.

Enquanto o sol quase se despedia, os cantores Awá Guajá silenciavam seus cantos. Já era hora de fechar as portas do céu e deixar os Karawara voltarem para o “mundo perfeito”. Ao seu modo, se despediram dos não indígenas e seguiram mata adentro ao encontro de suas experiências terrenas.

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