Na tradição acadêmica brasileira, o pensamento do filósofo e ensaísta Walter Benjamin (1892-1940)  é incontornável nos campos da política, das artes, da linguagem e da comunicação.

Em “Choque”, novo espetáculo criado e dirigido pelo dramaturgo Fernando de Proença, um conceito do pensador alemão promove um encontro radical entre a dança contemporânea e o teatro performativo se encontram em suas expressões mais experimentais.

Foto: Milla Jung
Proença e as atrizes Carmen Jorge, Elke Siedler e Juliana Adur criaram juntos um espetáculo muito original sobre como após o choque provocado por terremotos ininterruptos de estimulações e informações do nosso tempo um corpo reage se anestesiando, num estado de torpor que só outro choque mais forte pode despertar.
Para o diretor a peça é “um lançador de convites para o público” que pode refletir sobre questões como o tempo, os limites físicos do corpo e qual seria a revolução possível na era da hiperconexão.
Foto: Milla Jung
“Choque’ está em cartaz no Miniauditório do Teatro Guaíra, em temporada que segue até 19 de outubro, de quarta a sábado, às 20h, e domingos, às 19h. A entrada é gratuita, com retirada de ingressos uma hora antes das sessões.
Em entrevista exclusiva ao Fringe, Proença fala como arquitetou a coreografia de movimentos imprevisíveis das atrizes, sobre a radicalidade da proposta do espetáculo e sobre o que ele quer transformar através deste choque.
Entrevista – Fernando de Proença – dramaturgo
1)⁠ ⁠Como, e em que medida, o conceito de anestesiamento de Benjamin informa o espetáculo?
Me aproximei do conceito de Choque nos meus estudos de doutorado. Pensando Choque, Benjamin reflete sobre a fragmentação da experiência e o anestesiamento dos corpos – uma espécie de blindagem do corpo que não pode responder a todos os estímulos externos, à todas as solicitações do mundo – o que faz com que as pessoas operem a partir de um estado de vivência.
Para ele, o que tira o indivíduo desse estado de insensibilização é um outro choque, desta vez de revolução – seja micro ou macro, íntima ou coletiva – que realoca o corpo para um estado de experiência. Na peça, o desejo é praticar esse conceito, deixar ser atravessado no corpo por essa ideia.
Pensar na experiência do choque, na cena, é pensar em como vivemos hoje – inundados de estímulos, abalados perceptualmente, lidando com o imediato, com velocidades, com ritmos, com o incessante das imagens, com atordoamentos. Então, a peça experimenta essas dinâmicas e chama o espectador para pensar nos seus corpos, nos seus modos de vida, nos desalinhos e arranjos constantes que precisamos fazer para estarmos vivos.
2) ⁠A peça conversa com alguma tendência da dança contemporânea? Qual foi a centelha da criação de Choque?
A peça faz encontrar a dança, o teatro performativo e algumas experimentações da performance. As dançarinas, na cena, provam circuitos energéticos, estruturas corporais, protocolos espaciais e temporais, níveis de intensidade, elaboram na frente no público uma dança diária que se liga com o contexto.
Não trabalhei com coreografias pré-estabelecidas, mas com um conjunto de ações que fazem os corpos se mexer, se atualizar a cada segundo. Trabalhamos com variações e derivações de assuntos no corpo, criando uma dramaturgia que vai testando intenções, ondas, veemências.
O que acendeu o Choque foi o desejo de, mais uma vez, voltar ao corpo para pensar nestas questões. Pensar o tempo e criar uma peça que se monta em, pelo menos, 3 versões – que são criadas pela lida na cena de cada dançarina e de todos os profissionais de criação envolvidos nessa movida.
A mistura das pessoas envolvidas em Choque foi a materialidade primordial para a criação do trabalho.
3)⁠ ⁠A dança tem uma matemática: conseguimos prever para onde ela vai. Mas, em Choque, os movimentos são interrompidos, incompletos, contidos, imprevisíveis. Parece haver um código oculto que apenas você e as artistas em cena conhecem. Como foi construído esse jogo?
A dramaturgia da peça foi criada a partir de verbos – que se relacionam com o conceito de Benjamin. Carmen, Elke e Juliana experimentam na cena o mesmo verbo ao mesmo tempo. Cada verbo faz uma cena – derreter, escorar, tossir, escutar, equilibrar, sacudir, descansar.
A abordagem de cada verbo diz sobre o pensamento de cada dançarina – a singularidade entra no jogo. Cada artista trabalha com parâmetros diferentes – que dizem respeito aos seus padrões de movimento, a atualização dos desejos e a construção de lógicas próprias de movência.
Durante dois meses, encontrei no estúdio, uma dançarina por dia a fim de criar um percurso individual – construindo esse circuito de cena a partir da experimentação dos verbos em seus corpos e da unicidade de cada uma. Depois, os ensaios passaram a ser coletivos, onde aconteceu a mistura, a composição destes trajetos de cena.
A peça é aberta ao acaso, mas também conta com protocolos muito fechados – a fim de garantir que a experimentação seja rigorosa e que os assuntos variem – sendo os mesmos. O que o público vê são 3 versões – criadas pelas dançarinas, sobre o mesmo verbo. A peça é criada na diferença, no encontro de circuitos e na vibração do encontro – entre elas e com elas e o público.
4) ⁠Por que você escolheu (ou todos foram escolhidos) trabalhar com esta equipe de artistas? O quanto elas trouxeram e o quanto você arquitetou em ‘Choque’?
Essa foi a primeira matéria. O encontro de Carmen, Elke e Juliana pela primeira vez no palco – as três dançarinas têm um trajeto profissional longo, são artistas muito experientes. E também são muito diferentes, com escolas de dança distintas, experiência de cena diversas. Misturar as artistas no palco garantiu que o trabalho tivesse essa multidireção de parâmetros corporais, modos de tocar a cena.
E aí chegam os parceiros de sempre que me fazem levantar o trabalho: Diego Marchioro na interlocução, Amabilis de Jesus, na roupa, Beto Bruel e Lucas Amado na luz, Julia Klüber no som, Fátima Costa de Lima dando um seminário público sobre Benjamin e Elenize Dezgeniski fazendo a clínica do processo.
Arquitetei essa junção poderosa e fiz agir essas pessoas a partir de suas especificidades. O trabalho de construção da cena acontece nessas relações onde todos rumam numa mesma direção para construir sentido e lançar convites para o público.
5) ⁠Uma performance com elementos de dramaturgia teatral, um espetáculo de dança quase sem música. Afinal, o que é Choque?
Choque é uma peça radical. Trabalha sobre a unicidade em coletivo. Deixa o público experimentar outras temporalidades, lança convites para experimentar a vida com outros arranjos perceptivos. Procura colocar o espectador em contato com o seu corpo, com as questões do tempo. O trabalho é criado por cenas longas, lentas, dinâmicas – extrapoladas.
Chama o público para viver uma experiência compartilhada a partir de suas variações temporais, rítmicas, de pulsos diversos. Arrisquei criar cenas longuíssimas, trabalhei com a duração do enquanto. Propus um arranjo drástico das dramaturgias que constroem a cena.
A luz, por exemplo, não é recortada, focada – ela deixa a cena aberta para que o espectador possa escolher, editar o trabalho com o olho – as três artistas estão sempre no mesmo espaço – o que faz com que o espectador faça escolhas enquanto assiste.
No som, trabalhei também com versões quando pedi para Julia Klüber criar, a partir do seu repertório como música, duas novas roupagens para canções de Ratos de Porão e Grupo Rumo. A peça é recheada de sonoridades, de músicas incidentais criadas pelas dançarinas – gemidos, ais, gritos, canções que cantam na cena, sussurros, frases curtas ditas de supetão, a peça tem muitas músicas!
O trabalho operacionaliza o conceito de Choque – em seis verbos estímulos, desembocando no sétimo verbo, que para a dramaturgia é o tal choque de revolução, que é o descansar. Nada mais revolucionário em 2025 do que descansar. Nada mais radical do que ver um corpo se transformar. Nada mais preciso do que experimentar ideias no corpo. Nada mais chocante do que estar junto.
Choque é um lançador de convites para o público.
Compartilhar.

Sandro Moser é jornalista e escritor.

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

wpDiscuz
0
0
Deixe seu comentáriox
Sair da versão mobile