Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
Muitas vezes, fazer um documentário é editar imagens e sons do passado feitas por outras mãos. Nem sempre, porém, os autores conseguem registrar todo o material por conta própria — seja por limitações práticas, seja porque o tema aborda acontecimentos ou personagens do passado. É nesse contexto que surgem os bancos de imagens: acervos onde realizadores podem adquirir, mediante pagamento, o direito de usar fotografias ou vídeos produzidos.
Porém, com a chegada de players vorazes e bilionários ao mercado audiovisual brasileiro — como as gigantes do streaming Amazon Prime Video e Netflix —, o setor de bancos de imagens passa por um processo de forte inflacionário sem precedentes, o que tem gerado grandes dificuldades para realizadores independentes, que dependem desse tipo de material para viabilizar seus projetos.
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Para Evaldo Mocarzel, documentarista e diretor do filme Sérgio Mamberti — memórias do Brasil, “a gente acaba sendo confundido com uma big tech do streaming. E isso complica muito. Hoje, um minuto de música de alguns artistas pode custar mais de cem mil reais. É um absurdo para um filme feito com uma verba pequena, como o nosso — uma obra toda construída a partir de material de arquivo, cujos preços estão cada vez mais altos.”
Essa e outras reclamações de documentaristas do país levaram a ações concretas. Durante o Festival de Brasília de 2025, um grupo expressivo de profissionais do audiovisual lançou o Manifesto em Defesa do Documentário Brasileiro, lido por Mocarzel.
O texto, escrito por Daniela Broitman e Laura Faerman com participação do saudoso Silvio Tendler, denuncia o abandono do gênero nas políticas públicas e cobra mudanças urgentes no fomento ao cinema documental. Desde o lançamento, que reuniu 65 assinaturas, o documento jáultrapassou 650 adesões, incluindo nomes consagrados como Jorge Bodanzky, Eduardo Escorel, Helena Solberg, João Batista de Andrade, Joel Zito Araújo, Susanna Lira e Walter Carvalho.
O manifesto ressalta o papel estratégico do documentário na construção da memória coletiva e na valorização da diversidade cultural, além de sua importância para democratizar a produção audiovisual por meio de pequenas e médias produtoras.
O texto também alerta para o desemprego no setor e reivindica que o documentário seja tratado como parte essencial do cinema brasileiro, com espaço garantido em salas, TV e plataformas digitais. Entre as propostas, estão a criação de linhas específicas de editais públicos e o incentivo à circulação de documentários em escolas, fortalecendo seu potencial educativo e social.
Regulamentação do streaming
Na última quarta-feira, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria a cobrança da contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para serviços de streaming audiovisual, como Netflix, YouTube e Claro TV+, e enviou o texto ao Senado.
A proposta, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e relatada por Doutor Luizinho (PP-RJ), estabelece que as plataformas pagarão uma alíquota progressiva entre 0,1% e 4% da receita bruta anual, com isenção para empresas com faturamento até R$ 4,8 milhões. O objetivo é financiar o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, podendo gerar mais de R$ 1 bilhão por ano em recursos para o audiovisual brasileiro.
As empresas poderão deduzir até 60% da contribuição se investirem em produção ou compra de direitos de obras brasileiras, com incentivos adicionais para catálogos compostos majoritariamente por conteúdo nacional.
O projeto também prevê regras para dar mais visibilidade às produções brasileiras nos catálogos de streaming e restrições à exibição de filmes recém-lançados no cinema, exigindo um intervalo mínimo de nove semanas.
Parte da arrecadação será destinada a produtoras independentes, com 30% dos recursos voltados às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A proposta entra em vigor 90 dias após a sanção presidencial e marca uma nova etapa na regulação do setor de streaming no Brasil.
As melhorias voltadas a realizadores independentes incluem a destinação das receitas arrecadadas com a Condecine do streaming para a produção de conteúdos brasileiros independentes, inclusive obras voltadas a crianças e adolescentes.
Os recursos também poderão financiar pesquisa, inovação tecnológica e programas prioritários do Fundo Nacional da Cultura, além de apoiar serviços de streaming de pequeno porte e canais que exibam ao menos 12 horas diárias de produções nacionais, sendo três em horário nobre.
Apesar de representar um avanço na regulação do setor, o projeto de lei não enfrenta o problema da inflação no uso de bancos de imagens. Para o cineasta Evaldo Mocarzel, é necessário adotar políticas mais sensíveis às diferenças de escala entre produções. Ele defende a criação de tabelas de valores diferenciadas para grandes produtoras e artistas com poucos recursos, como forma de viabilizar obras culturais.
“Por isso, defendo a criação de tabelas diferenciadas. Não se trata de pedir nada de graça, mas de reconhecer o propósito da obra — homenagear um grande ator e valorizar a cultura brasileira. A gente quer poder reconstruir o passado, contextualizar, mas o acesso ao material é cada vez mais difícil. A televisão cobra, outros não autorizam. Às vezes, com o filme pronto, temos que refazer trechos inteiros por questões puramente mercantilistas. É triste ver a memória do Brasil sendo tratada assim”, afirma.
