Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
Quatro autoras pioneiras na imprensa nacional têm suas histórias contadas e suas obras reapresentadas pelo projeto É preciso falar sobre as ausentes: a colaboração feminina no jornal O Paiz (1884-1912).
Idealizado pela pesquisadora Ana Cláudia Suriani da Silva do University College London (UCL) , o trabalho resgata e organiza a produção de Maria Amália Vaz de Carvalho, Maria Benedita Câmara Bormann (Délia), Emília Moncorvo Bandeira de Melo (Carmen Dolores) e Júlia Lopes de Almeida.
Um quarteto de escritoras que falou sobre política, direitos civis, moralidade, educação e condição da mulher em um país que ainda lhes negava cidadania plena no final do século 19.
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Do trabalho, também participaram os pesquisadores Milena Ribeiro Martins, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Álvaro Santos Simões Jr., da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Alexandro Henrique Paixão, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Tania Regina de Luca, também da Unesp.
Iniciado em 2022, o projeto rendeu 6 livros de coletâneas crônicas, contos e artigos escritos dessas autoras, essenciais para entender a posição da mulher na sociedade da época. Todos estão disponíveis para download de forma gratuita no site MULHERES NO PAIZ – UFPR
A ideia do projeto nasceu do interesse de Ana Claudia, que leciona cultura brasileira em Londres, em buscar textos de autoria feminina para usar em sala de aula quando percebeu o potencial esquecido das páginas de O Paiz.

Fundado em 1884 no Rio de Janeiro, então capital do Império, O Paiz foi um dos jornais mais influentes do seu tempo. Republicano e modernizador, defendeu o fim da escravidão e a separação entre Estado e Igreja. Chegou a ser um dos diários de maior circulação e abriu espaço, ainda que restrito, para escritoras e cronistas mulheres, até sair de cena em 1932.
“Ela sabia que havia ali uma presença constante de mulheres, mas faltava um levantamento organizado”, lembra Tania Regina de Luca. A partir dessa inquietação inicial, Ana entrou em contato com colegas no Brasil e o grupo começou a se formar.
Sem financiamento, os pesquisadores iniciaram o trabalho com recursos próprios, comprando livros raros e vasculhando edições digitalizadas do jornal. O apoio do CNPq viria depois, em 2022, permitindo que o projeto ganhasse forma e fôlego.
“Era uma verba pequena, mas essencial”, afirma Tania. “Ela nos compromete, nos dá responsabilidade pública. Você prometeu entregar — e tem que entregar.”
A equipe também contou com estudantes de graduação da Unesp, Unicamp e UFPR, que transcreveram manualmente cada crônica e conto, página a página, já que o Reconhecimento Óptico de Caracteres (OCR) não reconhecia a impressão antiga do jornal. “Foi um trabalho formador”, destaca Milena Ribeiro Martins.
“Esses estudantes tiveram contato com um jornal inteiro, entenderam a complexidade da imprensa da época e descobriram como essas mulheres disputavam espaço na grande imprensa.”
As autoras
Mais do que resgatar textos, o projeto reacende o interesse por mulheres que tiveram participação intensa na vida intelectual brasileira do período, mas foram relegadas ao esquecimento. Cada uma das autoras reunidas ocupou, à sua maneira, um lugar marcante na imprensa e no debate público.
A portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921), primeira mulher a escrever em O Paiz, era conservadora em muitos pontos, mas discutia temas que sequer estavam em pauta no Brasil, como a aprovação do divórcio na França, e atuava como mediadora cultural, apresentando aos leitores brasileiros autores russos, peças de teatro e novidades intelectuais que ainda não haviam chegado ao país.
“No livro que a gente publicou, nós fizemos um levantamento de todos os textos e livros aos quais ela se referiu, que eram livros que acabavam de ter saído. Fosse em Portugal, fosse na França, porque ela lia muito bem o francês. Então, ela dava notícias de coisas para os leitores brasileiros, de obras, de peças de teatro, por exemplo, das cartas do Darwin, que a gente não tinha notícia ainda aqui. Então, ela atua como uma mediadora cultural. Mesmo que a leitura dela, desse material, seja muito conservadora. Mesmo assim, ela colocava questões no espaço público que muitos leitores nem imaginavam”, explica Tania.
Já Maria Benedita Borman (1853-1895), que assinava como Délia, destacou-se pela ficção — contos e romances que exploravam conflitos íntimos e temas sociais. Seus textos revelam um olhar feminino sobre o cotidiano urbano e sobre os dilemas das mulheres no final do século 19, frequentemente ultrapassando as expectativas do que se esperava de uma escritora da época.
Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1910), a Carmen Dolores, foi provavelmente a voz mais abertamente feminista entre elas. Suas crônicas discutiam cidadania, educação feminina e desigualdades, e muitas vezes dialogavam, criticavam ou confrontavam colegas homens da imprensa.

Sua escrita firme e articulada tornou-se referência e, como observa Milena, amplia a compreensão do debate público da época: “Com as crônicas da Carmen Dolores, podemos reler Olavo Bilac e outros cronistas a partir de um ponto de vista feminino que faltava.”
Por fim, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) talvez seja a mais prolífica e conhecida entre as quatro — ainda que longe do reconhecimento merecido. Autora de romances, contos, textos infantis e manuais de conduta, publicou centenas de crônicas em O Paiz, algumas de teor doméstico, outras profundamente engajadas em questões sociais, urbanísticas e políticas.
Em muitas delas, defendia a educação igualitária entre homens e mulheres, comentava reformas urbanas do Rio de Janeiro e denunciava injustiças do cotidiano. “A Júlia tinha uma atuação muito mais ampla do que supunham as histórias literárias tradicionais”, afirma Milena. “Nos jornais, encontramos uma autora socialmente atenta, crítica e extremamente contemporânea.”

Segundo Milena Ribeiro Martins, as páginas de O Paiz também revelam a postura combativa de Júlia Lopes de Almeida diante dos colegas homens.
“A Júlia tem algumas crônicas em que ela dialoga muito explicitamente com alguns escritores”, explica a pesquisadora. Em uma delas, ainda no final dos anos 1880, a autora denuncia que textos seus estavam sendo publicados sob o nome de outra pessoa. “Ela diz, em outras palavras: ‘se vão publicar textos meus, que não mutilem meus textos, que não cortem pedaços’.”
A resposta veio rápido. “Pouco depois, no mesmo jornal, um sujeito escreveu dizendo que não foi ele que a plagiou, mas ela que o havia plagiado”, conta Milena. A troca de acusações revela o ambiente hostil que escritoras enfrentavam, mesmo quando já ocupavam espaço na imprensa.
Os embates não pararam por aí. Em outra ocasião, Júlia publicou uma crítica negativa ao livro infantil de Figueiredo Pimentel, então um nome importante da literatura para crianças. Ele rebateu de forma direta, transformando a coluna do jornal em arena pública de debate literário.
“Essas disputas mostram a presença ativa da Júlia entre seus pares”, afirma Milena. “Às vezes de forma explícita, como nesses casos, e outras vezes de forma mais velada.”
Mais de um século depois da circulação de suas crônicas, essas escritoras finalmente voltam a ocupar o espaço que lhes foi tirado. Graças ao esforço coletivo das pesquisadoras e pesquisadores envolvidos no projeto, suas vozes deixam de ser notas de rodapé e retornam ao centro do debate literário e histórico.
No fim das contas, falar sobre as ausentes é também revelar tudo o que deixamos de ver — e tudo o que ainda podemos descobrir.
