Por Manoel Salvador, especial para o Fringe

A primeira audição de “Arthur Verocai 1972”, álbum de estreia do multiartista, me deixou atônito e estático, um estado que só o contato com uma obra de arte completa pode proporcionar. Se você ainda não ouviu, pode acontecer contigo também e eu explico abaixo as razões de por que todos devem se permitir e desfrutar desta joia escondida da música brasileira.

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Verocai é músico, maestro, compositor, cantor, engenheiro civil e, com certeza, mais um bocado de coisas. Aos 79 anos, tem no currículo cinco álbuns – quatro deles lançados após os anos 2000 –, que contam com participações de grandes artistas como Ivan Lins, Mano Brown e Azymuth. Mas a produção responsável por alçá-lo ao posto de monstro sagrado da música internacional, sua magnum opus, veio à luz há 53 anos.

Arthur Verocai conduzindo a orquestra nas gravações de 1972, em sessão que uniu cordas, sopros e experimentação sonora. Foto: reprodução

Antes do álbum de 72, Verocai já era conhecido no meio musical, pois fazia arranjos para artistas como Elis Regina, Ivan Lins, Milton Nascimento e Jorge Ben. Essa abertura na indústria possibilitou que ele obtivesse liberdade total na produção do seu álbum de lançamento, gravado pela Continental Music.

Com a carta e cheque em branco da gravadora, Verocai monta um dream team: 12 violinos, quatro violas e quatro violoncelos combinados com mais dois percussionistas; um deles foi Pedro Santos, idealizador do álbum “Krishnanda”, outra joia culta da música brasileira.

O álbum abre com “Caboclo”, faixa em que Verocai e sua big band já demonstram as intenções. Uma mistura bem contemporânea de violão melódico com um emaranhado de efeitos sonoros eletrônicos e um solo de guitarra distorcida, que criam o background perfeito para o vocal melancólico:

Caboclo quando sai
Acorda o sol pela manhã
Planta algodão
Planta nuvens pelo chão

Soa como um Pink Floyd do interior paulista. E, aliás, falando em interior paulista, um dos colaboradores do álbum é o compositor e magistral poeta paulistano Vitor Martins, nascido em 1944, em Ituverava, há 450 quilômetros da capital. Martins colabora na composição de oito das dez músicas do álbum, dentre as quais a notável “Presente Grego”.

Debruçado na Grécia Antiga
Nas ruínas, homens ou tribos
Ouço um grito de dois mil anos
Na garganta um nó underground,

Sem dúvida, a música mais animada do álbum. A letra enigmática faz uma crítica à ditadura militar – que deu aos brasileiros um presente de grego. Nesta faixa, a orquestra sobressai: um saxofone arrebatador, acompanhado por indecifráveis e incontáveis instrumentos de sopro, dá o pique para uma sinfonia ascendente de soul e jazz, que parece invadir o corpo. E tudo isso com um groove irretocável de um piano e uma bateria geniais.

Capa original de “Arthur Verocai 1972”, álbum de estreia que se tornaria um clássico cult internacional. Foto: reprodução

Uma das principais características de “Arthur Verocai 1972” é a melancolia que ele carrega, muito influenciada pelas reconstituições – que soam quase como digressões – do interior de São Paulo, descritas nas composições de Martins. Como pode ser observado na faixa “Na Boca do Sol”, a mais reproduzida no Spotify de Verocai;

Na minha cidade do interior
Tudo que chegou, chegou de trem
Minha mãe olhava pra estação

Toda minha vida eu vi passar
No brilho dos trilhos de um trem
Que me vem e parte toda manhã

E é claro que o amor – somos a nação mais romântica do mundo – também não poderia ficar de fora dos temas. A faixa que mais abertamente discorre sobre o sofrer do amar é também a segunda mais ouvida no Spotify do maestro carioca: com mais de nove milhões de streams, “Dedicada a Ela” foi composta inteiramente por Verocai;

Ficou vazio o meu quarto
A cama e o meu cobertor
Não sei se falo às paredes
Ponho um disco pra ouvir
Eu sei lá
Quem sabe eu deite

Ou leia um livro, talvez
Saia para ver os amigos
Pra não ter que pensar
Em você.

O maestro no processo de criação dos arranjos, combinando influências de soul, jazz, música brasileira e experimentação eletrônica. Foto: reprodução

Aqui, a grande orquestra acalma. O vocal desalentado contribui para evocar decepções amorosas – até quem nunca amou é envolvido pelo solo do saxofone e a linha de baixo. Tudo tão bonito e melancólico que acaba despertando um sentimento muito complexo: a aura do sofrimento em comunhão com o prazer da apreciação estético-musical. E a mulher a quem a música se dedica, nunca teve sua identidade revelada.

Apesar da sofisticação e qualidade estética, o lançamento do álbum foi completamente ignorado e escanteado pela indústria fonográfica, pois estava “fora dos padrões vigentes”. Verocai não ganhou um tostão com esse disco até a sua redescoberta no início dos anos 2000. Segundo a BBC, um funcionário da Continental chegou a confessar que o disco vendeu tão mal que as cópias em estoque foram incineradas para fazer mais discos para gravar os Secos & Molhados.

Verocai na mesa de som da Continental, moldando timbres. Foto: reprodução

Apesar da rejeição de mais de 30 anos, Verocai, como uma fênix, ressurgiu das cinzas por volta de 2003, nos Estados Unidos, Europa e Ásia. No Japão, “Arthur Verocai – 1972” é um clássico. Nos EUA, rappers como MF Doom e Ludacris já samplearam suas músicas. No Brasil, artistas contemporâneos como os rappers Marcelo D2 e NiLL também. Hoje, injustiçado vingado, Verocai está no alto patamar dos gênios da música.

Eu poderia continuar escrevendo por mais uns dias, mas só quero deixar um convite: dê uma chance à obra-prima do maestro carioca. Ele pode mudar a sua vida e sua relação com a arte, assim como fez comigo.

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