“E se eu virasse puta?” A mulher que nunca se fez essa pergunta que atire a primeira pedra.
Cercada de estigmas e mistificações, a prostituição, apesar de ser a profissão mais antiga do
mundo, segue sendo um tabu cercado de medos e preconceitos. Medo de ser reconhecida por
alguém, medo de doenças e medo de violência são só alguns dos fatores, dentre uma longa lista,
que fazem com que muitas mulheres venham a desconsiderar essa opção. Afinal, boas meninas de
boas famílias não viram prostitutas, isso é para mulheres pobres, perdidas e sem opções. Será?
Esse não é, por exemplo, o retrato de filmes como La Belle de Jour (1967) e Só ao meu
Desejo (2023), ambos franceses. No filme de 1967, assistimos a uma dona de casa de uma família
burguesa, que não consegue transar com seu marido, passar as tardes como prostituta em um bordel
enquanto ele trabalha em um hospital. E, no filme Só ao meu Desejo, assistimos a uma estudante
de pós-graduação que, tendo trancado seu curso por conta de problemas com o orientador e cansada
de trabalhar horas como garçonete para ganhar pouco, decide trabalhar em uma boate de strip e
fazer um dinheiro extra saindo com alguns clientes após o expediente na boate. Tendo como
protagonistas, em ambos os filmes, duas personagens brancas, padrão, de classe média ou alta, os
filmes contribuem para alargar nosso imaginário do perfil das mulheres na prostituição. Se no
filme de Luis Buñel podemos argumentar que La Belle de Jour poderia ter se voltado para a
prostituição buscando não depender financeiramente de seu marido – apesar do filme em si
mobilizar motivações mais complexas que isso –, no filme de Lucie Borleteau a mensagem é clara:
qual é a maior liberdade possível para uma mulher dentro do capitalismo? Vender seu tempo pelo
preço que quiser para o cliente que ela escolher. E a prova de que essa mulher não perde seu valor
é que ela pode vender seu corpo-seu tempo mais de uma vez, pelo mesmo preço ou mais caro, por
quantas vezes desejar.
Assistimos a Só ao meu desejo esperando a reviravolta – o momento em que esse conto
idílico irá se revelar um conto de advertência –, mas esse momento simplesmente não acontece.
Não há nada de errado. A protagonista Aurore simplesmente vai ao trabalho, sai com clientes,
acontece uma ou outra situação desconfortável – como toda pessoa que trabalha com público já
deve ter experimentado –, conhece um cliente que tem poder aquisitivo para pagar pela viagem
dos sonhos de Aurore e fim. Ela faz essa viagem. Sem doenças, filhos abandonados, perseguição
de cafetões ou agressões. É certo que se trata de um filme que tem como cenário um país do
primeiro mundo e estamos assistindo a uma personagem que – apesar de ser uma mulher bissexual
em uma profissão estigmatizada –, não deixa de ser uma cidadã europeia. Agora, vejamos um
retrato da prostituição no Brasil – mais especificamente, de Porto Alegre – sob a perspectiva da
peça Meretrizes (2023).
Sob a direção de Camila Bauer, a peça Meretrizes traz para o palco histórias reais de
mulheres na prostituição. Dividida em dois momentos, ao longo do primeiro ato assistimos à
dramatização desses relatos na performance de Liane Venturella e, no segundo momento, temos a
oportunidade de fazer perguntas a duas profissionais da área, Paula Assunção e Soila Mar, ao som
da trilha sonora original tocada ao vivo – ao longo de todo o espetáculo – pela pianista Catarina
Domenici. Os depoimentos recolhidos são fruto de uma pesquisa de um ano que a diretora realizou
presencialmente em Porto Alegre, mas também online, junto a Liane Venturella e à historiadora
Juliana Wolkmer através do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP-POA).
De cara, a prostituição é apresentada por Liane Venturella como uma continuição do
matrimônio e como um tabu: “enquanto sexo for tabu, a prostituição vai existir”. Essas relações
construídas logo na primeira cena são as chaves de leitura que situam as e os espectadores, e
imprimirão o tom do debate que se segue ao primeiro ato. Demonstrando muita aptidão técnica, a
pianista e a atriz se acompanham nesse primeiro ato: Liane transitando entre diferentes
personagens – construindo até mesmo diálogos nos quais interpretava entrevistadora e entrevistada
ou mais de uma personagem ao mesmo tempo –, e Catarina demonstrando um vasto repertório no
piano, indo do funk a peças que se assemelhavam a partituras de John Cage.
No entanto, nesse ponto, é preciso admitir que tamanha técnica, por parte da atriz, impressa
na forma de transmitir os relatos recolhidos, teve como resultado o eclipse quase que total de seus
conteúdos. O que deveria ser o cerne da peça se torna secundário em meio a trocas de roupas,
interpretações fragmentadas de múltiplas personagens simultaneamente, e sobretudo em meio às
imitações caricaturadas de algumas pessoas em situações de pobreza e vulnerabilidade. Os vídeos
exibidos, nos quais podíamos ter acesso a trechos dessas entrevistas oferecidas, pareciam operar
mais como fillers – preenchendo o intervalo entre trocas de figurino –, do que como objetos
autônomos dentro da composição.
A atriz parece ter dificuldade de abrir mão de seu protagonismo até mesmo durante o
segundo momento da peça, no qual esse papel deveria ser ocupado por Paula Assunção e Soila
Mar. O Eu-Liane que nos chega antes do conteúdo dos depoimentos das prostitutas, no primeiro
ato, se torna ainda mais evidente durante o segundo ato, no qual a atriz chega em alguns momentos
a se posicionar na frente das convidadas enquanto a plateia dirige suas perguntas a elas. Os
momentos em que temos acesso ao material dessa tão importante pesquisa, seja por meio dos
vídeos apresentados ou pelas respostas de Paula e Soila, são os pontos altos da peça. Justamente
por isso, seria importante que o segundo ato também fosse pautado por uma dramaturgia que
orientasse a interação da plateia com as prostitutas.
Uma boa questão para criar um vínculo com essa plateia, por exemplo, seria: “qual é a
relação de vocês com a prostituição?”. A construção desse vínculo, que foi prejudicada no primeiro
ato, recai sobre Paula e Soila, que têm cerca de 20 minutos para conquistarem sua humanidade –
trazendo perspectivas positivas acerca de seus trabalhos – diante de uma plateia que as vê como
figuras num zoológico, mulheres vítimas das circunstâncias que não reconhecem as próprias
opressões a que são submetidas. A curadoria dos relatos apresentados não ressalta os aspectos
positivos da profissão e que fazem com que, no final do dia, ainda valha a pena para muitas
mulheres seguirem na prostituição mesmo tendo outras opções.
Tanto na performance de Liane quanto nos vídeos, ouvimos histórias de mulheres que não
são pagas após o trabalho e não possuem amparo da justiça, mulheres que abandonaram crianças,
mulheres que sustentam uma família inteira com seu trabalho e ainda recebem julgamentos e
ingratidão como recompensa, mulheres que fazem jornada dupla como prostitutas e terapeutas dos
clientes, mulheres que se infectaram com doenças, mulheres que sofreram violência, “mulheres
mentirosas” (sic), mulheres vítimas de violência e alguns poucos relatos que destoam do
imaginário que já é oferecido por novelas e filmes. Esses são sim retratos da prostituição
compulsória, que infelizmente ainda se faz presente nesse país, mas e quanto à prostituição por
opção? Nesse sentido, a peça não contribui para a desmistificação da prostituição e suas múltiplas
faces, mas, pelo contrário, reforça preconceitos.
Para além de todas as narrativas já citadas, voltemos à relação entre prostituição e
matrimônio enunciada logo no início da peça. Essa relação é importante, porque ela tem como
efeito a construção de uma peça hétero-cis-monogâmica que pouco tem a dizer para pessos que
escapam da heterossexualidade, da cisnormatividade e/ou da monogamia.
Paul B. Preciado, em seu livro Pornotopia (2020), nos fala sobre como a Playboy e outras
produções midiáticas, como por exemplo a franquia de filmes 007, contribuem para a construção
de um imaginário no qual os homens (claro, os hétero-cis) são agentes secretos com vidas duplas,
recheadas de aventuras, encontros e segredos, enquanto as mulheres são coelhinhas bonitinhas que
esperam por eles dentro da mansão, quer dizer, da casa. Assim, são moldadas ficções de gênero
nas quais os homens são esses seres indomáveis, que não controlam sua pulsão sexual, incapazes
de se manterem fiéis – muito embora se engajem em relações matrimoniais – e as mulheres podem
pacientemente esperar que eles fiquem cansados e voltem para casa. Durante o debate, surgiu uma
pergunta que retoma exatamente esse ponto. A espectadora pediu às prostitutas um conselho para
as esposas, ao que Soila responde “não tem o que fazer, somente 10% dos homens são fiéis de
acordo uma pesquisa feita recentemente” e Paula responde “compre um vibrador, pelo menos o
prazer está garantido”. Opções como “mulheres, saíam de casa!”, “vire você também La Belle de
Jour” ou “abra seu relacionamento e vá ser feliz” passam longe do horizonte. E não é de se
surpreender que passem longe desse horizonte quando não há nada na construção da peça que faça
ser possível supor que a prostituição poderia existir para além desses arranjos.
É somente com uma resposta de Paula à pergunta “qual maior prazer você já experimentou
na profissão?” que surge uma fresta para além do reducionismo prostituição-casamento. Ela
responde que existe uma demanda de pessoas com deficiências por prostitutas, uma vez que essas
pessoas muitas vezes têm dificuldades de serem lidas como sexualizadas ou desejadas. Justamente
aí, no atendimento a essas pessoas, reside um dos prazeres que Paula extrai da profissão. Mas meu
ponto é: uma informação tão interessante e enriquecedora como essa não pode aparecer apenas se
tivermos sorte com as perguntas da plateia. Me parece ser o tipo de informação que deveria compor
a dramaturgia, junto aos relatos sobre o desejo de ser puta desde sempre, de admirar a profissão,
de ter a possibilidade de escolher seu próprio preço e seu cliente, pois são histórias como essas que
nos dão a ver uma outra face da profissão para além do óbvio e do estigmatizado.
Dito isso, boa sorte, mulheres! Vida longa ao Núcleo de Estudos em Prostituição e às putas
desse país. Que esse debate se aprofunde e se propague, trazendo cada vez mais humanidade e
visibilidade para o trabalho e luta das prostitutas.
Meretrizes foi apresentado na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba nos dias 29 e
30/03/2024.
Ficha Técnica:
Direção: Camila Bauer; Elenco: Liane Venturella; Trilha Sonora Original e Piano ao Vivo:
Catarina Domenici; Participação Especial em Curitiba: Paula Assunção e Soila Mar; Dramaturgia:
Camila Bauer e Liane Venturella, a partir dos relatos de diferentes profissionais do sexo; Pesquisa
em História Oral / Entrevistas realizadas em Porto Alegre: Juliana Wolkmer; Iluminação e
Videografia: Isabel Ramil; Figurino: Liane Venturella; Consultoria: Paula Assunção, Monique
Prada e Soila Mar; Arte Gráfica: Mitty Mendonça; Assessoria de Imprensa: Léo Sant’Anna;
Fotografia: Laura Testa; Realização e Produção Geral: Projeto Gompa (@projetogompa); Apoio:
NEP-POA (Núcleo de Estudos sobre a Prostituição – Porto Alegre) e Fatal Model.