Para a pensadora Audre Lorde a dimensão erótica é uma das mais pujantes manifestações de nossas forças vitais, aquilo que estimula nosso conhecimento acerca de nós mesmos e do mundo. É ela quem nos diz: “Quando liberado de sua vigorosa e restritiva cápsula, ele [o erótico] flui e colore a minha vida com uma energia que eleva, sensibiliza e fortalece todas as minhas experiências”. Por numerosas razões morais, políticas e ideológicas este fluxo de energia é diuturnamente alvo de interdições e silenciamentos.

É nesta seara que o espetáculo Meu corpo está aqui, almeja mergulhar, debatendo as afetividades e sexualidades de pessoas com deficiência. O trabalho, dirigido por Clara Kutner e Julia Spadaccini, traz à cena quatro artistas com diferentes deficiências e um ator intérprete de Libras. Ao recusar as estigmatizantes visões que tendem a apagar seus desejos e fantasias eróticas, o elenco também se nega, num plano maior, a ser objeto do discurso de outrem, assumindo, neste gesto, a posição de sujeito enunciador da própria narrativa. É também reafirmando suas erotizações que as experiências daquelas vidas não apenas se fortalecem, como nos diz Lorde, mas também se pluralizam, deslizando para além das óticas capacitistas.

A dramaturgia, também de Julia Spadaccini e Clara Kutner, conjuga diferentes relatos pessoais, nos quais vemos um mosaico de vivências agridoces, variando entre as rejeições e as fantasias, as feridas e as alegrias destas existências estigmatizadas, mas ao mesmo tempo pulsantes. Antes de mais nada, é interessante notar que, neste trabalho, a enorme ênfase dada aos depoimentos reflete, no âmbito das teatralidades contemporâneas no Brasil, o papel destacado das autoficções, dos biodramas, das narrativas/escritas de si (e congêneres) cujas poéticas não apenas questionam a ideia de um sujeito neutro e universal, sobrepondo dimensões íntimas e sociopolíticas, mas encaram as fissuras, as imagens, as cicatrizes e as afetações do corpo como uma chave de leitura para pensar as abissais contradições do tecido social (Azira’IMacacosTrês Luzes e Manifesto Transpofágico são outros trabalhos que, no Festival de Curitiba deste ano, se aproximam, de maneiras distintas, destas considerações). A partir de uma série de edições, como cortes, acréscimos e fragmentações, traços biográficos são transformados em elementos dramatúrgicos, compondo uma cena fundada nas experiências daquele corpo que performa.

Em Meu corpo está aqui as reminiscências são trazidas ao palco, majoritariamente, por meio do discurso direto, isto é, da apresentação, na primeira pessoa do singular, das situações vividas. Em geral, o espetáculo articula discursos diretos e dramatização daquilo que foi narrado. De modo alternado, cada artista assume o foco e conta uma situação em uma estrutura um tanto engessada. A composição dos relatos se torna menos audaciosa artisticamente à medida que se preocupa mais em descrever do que em analisar os fatos dispostos, abstendo-se de articular, no próprio discurso, uma perspectiva que reinterprete as vivências para além das dores. Raonê Thinar e Bruno Ramos, por exemplo, dão-nos seus depoimentos em que a frustração afetivo-sexual, motivada pelo capacitismo, é a grande tônica. Nos dois casos, os relatos não ultrapassam o teor factual e resignam-se a apresentar a situação tal qual ela (supostamente) ocorreu, julgando, talvez, que o relato direto conferiria mais veracidade ou força ao discurso.

O relato de Pedro Fernandes destoa interessantemente. Ele rememora as deliciosas carícias trocadas com seu antigo cuidador, quando ele era ainda menor de idade. O seu texto aponta para as pulsações inexplicáveis que envolvem o desejo; fantasias que escorrem por entre as mãos rígidas do moralismo. Não é pura adesão o que Pedro almeja. Ele está consciente das complicações envolvidas na sua fala. O seu relato expõe não apenas as agressões da realidade, mas as suas contradições internas. Estes paradoxos imprimem ranhuras que complexificam cenicamente a sua humanidade, também ela multifacetada.

De um modo geral a atuação de Juliana Caldas também traz proposições que fissuram, em alguma medida, a forma dos discursos diretos, alinhavando uma abordagem irônica que, em maior ou em menor grau, leva-nos a reconsiderar as implicações políticas do riso. As expressões, os trejeitos e o sarcasmo delineados pela atriz perfazem os trechos mais cômicos da peça. A cena em que ela desmonta (ou talvez remonta), analiticamente, o conto infantil “Branca de Neve” caminha no sentido de explicitar as naturalizações das violências físicas e simbólicas presentes em nossas visões de mundo. Pejorativamente chamados de “anões”, a atriz pontua firmemente: não são bibelôs angelicais, são homens adultos, seres humanos. A abordagem de Juliana em muito me lembrou a do historiador cultural Robert Darnton, para quem “os contos populares são documentos históricos”, não apenas registrando, de maneira fabular, pensamentos e ideologias de uma época, mas também atuando na constituição de imaginários. É salutar sempre relembrarmos que a ficção (teatral, fílmica, literária etc) delineou personagens com deficiência como assexuados, essencialmente vilanescos ou heróicos e desprovidos de densa substância emocional.

Do ponto de vista performático, a encenação se torna realmente mais complexa quando a materialidade e os contornos daqueles corpos se projetam como a própria enunciação produtora de sentidos e de densidades no desenho mesmo da cena, solapando o estatuto da representação ou do mero relato.  No início do espetáculo, Bruno Ramos se dirige a nós em LIBRAS, mas a tradução não vem. Naquele brevíssimo momento, nós, ouvintes desconhecedores daquela língua, somos deslocados, descentrados. O violento privilégio de se sentir confortável em um mundo preparado para nossas condições é sutilmente sublinhado. Não é preciso representar o vão comunicacional, ele se manifesta ali pesadamente, como densa realidade política. Em outra cena, o mesmo ator adentra o palco, expressando-se com suas mãos. Mais uma vez não há tradução. Ao ser privado da decodificação daquilo que Bruno exprimia, sou levado a observar atentamente a concretude cinestésica de suas mãos. Aquela fisicalidade, esculpindo formas, afigurava-se como pura coreografia. Os desenhos dos dedos eram mais importantes do que o valor semântico. Ou seja, avultava o peso do significante, não o do significado. Todavia, a peça não verticaliza nisso.

Aí me parece haver um campo deveras instigante como experimentação poética: em primeiro lugar, a Língua Brasileira de Sinais sendo pensada como possibilidade cênica em si, na sua especificidade morfológica, corporal; em segundo lugar, o não-saber, a derrocada da interpretação dos signos nos convoca a desenvolver, naquele contexto teatral, uma relação outra com aquele corpo, vendo-o de modo ampliado, num tempo outro (sem procurar desesperadamente o tradutor para nos socorrer). Ao discorrer sobre isso, tenho em mente a investigação cênica desenvolvida no espetáculo peruano Hamlet, do grupo La Plaza, no qual Chela De Ferrari dirige um elenco inteiramente formado por artistas com síndrome de down. Na peça, os traços psicofísicos, as eventuais dificuldades em falar e os possíveis lapsos dos atores e das atrizes não eram vistos de maneira acessória, essencialista ou determinista, mas foram incorporados como elementos constitutivos daquela poética cênica. Não somente o canônico texto de Shakespeare estava a ser revisto crítica e criativamente, mas a própria arte teatral foi repensada a partir daquelas subjetividades desejantes e interessadas em abrir caminhos para inventar modos outros de criar. Lá também as suas facetas afetivas e sexuais são delicadamente abordadas, estremecendo entendimentos simplórios que não reconhecem a pluralidade daquelas vidas.

O segundo exemplo em que texto espetacular e texto cênico são mais elaborados é quando Pedro Fernandes fala-nos que a duração do seu banho é medida pela disponibilidade do outro; um alguém cujos sonhos e desejos não coincidem com os dele, evidentemente. A reflexão do ator joga luz sobre a especificidade da relação do seu corpo com o tempo. A sua condição, entre limites e possibilidades (afinal, esta é a realidade de todos os corpos), faz com ele experimente e crie temporalidades suas, próprias, reconhecendo as lógicas intimas da sua fisicalidade. O seu texto nesse momento adquire uma tonalidade mais lírica. Esse afastamento (ainda que ligeiro) do discurso direto chapado possibilita que a dimensão autoral e particular da atuação do artista apareça mais fortemente.

Meu corpo está aqui propõe, por si só, um debate fundamental, porém nem sempre verticaliza, em termos composicionais, cênicos e dramatúrgicos, as indagações que lhe são caras. Ademais, ao discutir o erotismo e as afetividades de pessoas com deficiências alguns questionamentos mais complexos escapam à concepção do espetáculo: por onde passam os desejos daqueles artistas? As suas fantasias eróticas abarcam também outras pessoas com deficiência? Onde moram as contradições mais espinhosas? Quando o desejo, tão intempestivo e indecifrável, revela paradoxos e surpresas que remodelam nossas próprias autoimagens? Ao investigar estes aspectos, a cena tem a possibilidade de mergulhar radicalmente nas singularidades daquelas vidas, deixando, gradualmente, de se pautar apenas (ou principalmente) pela necessidade de dar respostas às preconcepções reducionistas dos outros. A crítica teatral não é o terreno das futurologias, mas é possível que estejamos a ver um projeto artístico que poderá, no porvir, radicalizar sua linguagem artística, como um aprofundamento estético e político.

# O espetáculo Meu corpo está aqui foi apresentado no Festival de Curitiba de 2024 nos dias 30 e 31 de março no Teatro Zé Maria
FICHA TÉCNICA

Texto e Direção: Julia Spadaccini e Clara Kutner

Elenco: Bruno Ramos, Haonê Thinar, Juliana Caldas e Pedro Fernandes

Ator Intérprete de Libras: Jadson Abraão

Direção de Produção e Coordenação Geral do Projeto: Cláudia Marques

Diretor Assistente: Michel Blois

Produção: Fabrício Polido

Colaboração de Texto: Bruno Ramos, Haonê Thinar, Juliana Caldas e Pedro Fernandes

Figurino e Ambientação Cênica: Beli Araújo

Iluminação: Paulo Cesar Medeiros

Direção de Movimento: Laura Samy

Música: Luciano Câmara

Redes Sociais: Rafael Teixeira

Operador de Som: Carlos Gabriel

Operador de Luz: João Gioia

Realização: Fábrica de Eventos (@fabricadeeventosrj)

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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